29 de março de 2013

On Writing + Quatro Estações









On Writing – A Memoir Of The Craft
Autor: Stephen King
384 págs.
Hodder & Stoughton, 2000









Quatro Estações
[Different Seasons]
Autor: Stephen King
538 págs.
Livraria Francisco Alves, 1991


"Olhei mais uma vez a sanguessuga morta em cima de um dos arbustos pisoteados sobre os quais havíamos pulado, gritando e chorando. Tinha um aspecto menos intumescido... mas ainda sinistro.
Quatorze anos depois editei meu primeiro romance e fiz minha primeira viagem a Nova Iorque.
[...] Keith, meu editor, parecia encantado em me ciceronear. A última coisa de turista que fizemos foi um passeio de barco até Staten Island, e encostado no parapeito por acaso olhei para baixo e vi uns vinte preservativos usados boiando suavemente avolumados. Foi um momento de recordações — talvez na verdade tenha sido uma viagem através do tempo. De qualquer maneira, por um segundo voltei literalmente ao passado, parando na metade daquela margem e olhando para trás para a sanguessuga: morta, menos inchada... mas ainda sinistra.
Keith deve ter visto algo em meu rosto, pois disse:
 — Nada bonito, não é?
Apenas balancei a cabeça, querendo lhe dizer que não se desculpasse, querendo lhe dizer que você não precisa ir a Nova Iorque e passear de barco para ver camisinhas usadas, querendo dizer: O único motivo pelo qual uma pessoa escreve é para entender o passado e preparar-se para futuras perdas; por isso todos os verbos dos romances são no passado". 
KING, Stephen. O Corpo. In Quatro Estações, p.411.

* * *


Quase sempre, é a praia.

Não havia (e continua não havendo, até onde sei) rodoviária por lá, portanto era preciso desembarcar numa cidade próxima e pegar um ônibus de linha. Sabendo que enfrentaria uma longa espera no ponto, passei antes num boteco para comprar o primeiro maço da minha vida (um Marlboro vermelho), mais uma caixinha de Fiat Lux — por algum motivo, achei que acender o cigarro com fósforo tinha um ar meio rústico que combinava com a minha mochila impermeável para trilhas. Disfarcei o acesso de tosse provocado pela primeira tragada e senti-me sombrio, amargo, adulto.

Àquela altura, plena tarde no fim de janeiro, ônibus e estrada estavam vazios, e o motorista fazia as curvas numa velocidade quase alarmante. Eu ia com a janela aberta, sentindo a maresia em lufadas quentes, vendo os relances da enseada às vezes se transformarem em mar aberto. Saltei a poucos metros da ponte de madeira, no caminho para a bica d'água, quase na esquina da casa de tijolos aparentes — à sua frente, o já familiar chão de barro parecia eternamente molhado, mesmo nos dias de sol escaldante. Descalcei tênis e meias e encolhi-me com o arrepio ao mesmo tempo repulsivo e reconfortante da massa de terra fria e úmida infiltrando-se entre os dedos dos pés.

Abri o portão de madeira, e talvez naquele momento o aparelho de som lá na sala estivesse mesmo tocando Belong, ou talvez seja só como eu me lembro da cena. O que importa é que tão logo vi a rede na varanda e senti a aspereza do piso de cimento da garagem em contraste com a maciez do barro, gritei com mais animação do que me seria habitual: "Ô de casa!".

Licença poética ou não, a justificativa de Stephen King para o tempo verbal da ficção está bem próxima da verdade, pelo menos para mim. A escrita me levou inúmeras vezes de volta àquele finzinho de férias na adolescência, em que a casa da praia e o Out Of Time, do R.E.M., me ajudaram a superar a primeira desilusão amorosa. Não que contar histórias seja necessa- riamente uma forma de terapia de regressão, mas boa parte da literatura é feita de protagonistas em momentos decisivos de suas vidas, e imagino que cada autor utilize as imagens que lhe são mais familiares na hora de criar personagens e situações. Sempre tive curiosidade de saber quais seriam as de King. Ele revela algumas em On Writing — como a vez em que, aos cinco ou seis anos de idade, perguntou se a mãe já tinha visto alguém morrer, e ela, além de não fugir do assunto, ainda encheu a resposta de pormenores macabros. Ou quando sua família se mudou para uma pequena cidade em Connecticut, e ele e o irmão descobriram, perto da nova casa, uma ampla área de matagal atravessada por uma velha estrada de ferro, vizinha a um ferro-velho e que mais tarde daria origem aos Barrens, quartel-general do Clube dos Perdedores em A Coisa [894 págs.; Objetiva, 2001].

Misto de livro de memórias e manual para o aspirante a escritor, On Writing não se preocupa tanto com detalhamento e cronologia em sua seção autobiográfica, apropriadamente intitulada C.V. (de "curriculum vitae"). Ainda que inclua também um ou outro episódio aleatório, como o hilário caso da babá e a traumática relação com os médicos, King se concentra naquilo que teve impacto em sua formação, como a ausência de um aparelho televisor em seu lar durante seus dez primeiros anos de vida, o que o levou a devorar quadrinhos, filmes B de ficção científica, terror e suspense — em especial, as versões de contos de Edgar Allan Poe dirigidas pelo papa do cinema trash, Roger Corman — e revistas com histórias dos mesmos gêneros. Aliás, foi para esse tipo de publicação que ele começou a enviar algumas de suas primeiras incursões literárias. Não há como não sorrir no trecho em que conta sobre a primeira de muitas cartas de rejeição que recebeu das editoras: ao som de I'm Ready, de Fats Domino, cheio daquela sadia petulância juvenil, o então garoto afixou-a como um troféu no quadro defronte à sua escrivaninha.

Em meio às recordações, King antecipa algumas dicas para os futuros romancistas e contistas, como a resposta à inevitável pergunta sobre inspiração. "Boas ideias para histórias parecem vir literalmente do nada, navegando pelo céu vazio até você: duas delas que antes não tinham relação entre si de repente se juntam e formam algo de novo sob o sol. Seu trabalho não é encontrar essas ideias, mas reconhecê-las quando aparecem", aponta, pinçando um exemplo de sua carreira. A experiência de trabalhar como faxineiro em uma high school durante um verão e conhecer o vestiário feminino, com suas latas de metal para descarte de absorventes e cortinas de plástico entre os chuveiros, voltou à sua cabeça anos mais tarde, quando viu um artigo sobre telecinese na revista Life. As duas ideias se juntaram, tornando-se o embrião de Carrie, A Estranha [140 págs.; Objetiva, 2007], romance protagonizado por uma adolescente que descobre ter poderes paranormais na mesma época em que tem sua primeira menstruação.

Em duas das seções seguintes do livro, Toolbox e On Writing, estão elencados os conselhos mais práticos. O escritor descreve a sua "caixa de ferramentas" (com vocabulário e gramática no topo e os elementos de estilo logo abaixo), aconselha a evitar a voz passiva ("é a voz dos garotinhos usando bigodes pintados com graxa de sapato") e declara que "o advérbio não é seu amigo". Também discorre sobre organização e construção de parágrafos e a importância da leitura e da disciplina. Tudo isso sem pedantismo algum, mas com muito bom humor e exemplos funcionais — por exemplo, as regras para edição (ou a arte de eliminar da história tudo o que não for história) são ilustradas com as alterações feitas na versão original do conto 1408, incluído na compilação Tudo É Eventual [306 págs.; Objetiva, 2005].

Fica evidente que a reflexão sobre o próprio ofício tem ocupado a mente de King desde antes de On Writing. Basta ver a extensa galeria de personagens escritores em sua bibliografia — há desde o bem-sucedido Paul Sheldon, de Angústia [346 págs.; Livraria Francisco Alves, 1991] até o alcoólatra Jack Torrance, de O Iluminado [264 págs.; Objetiva, 1999], passando pelo hesitante Bill Denbrough, de A Coisa. Poucos títulos, porém, reverenciam tanto o ato de contar histórias quanto Quatro Estações. O livro é formado por quatro novelas, cada uma relacionada a uma estação do ano, e três das quais foram transportadas para o cinema: Rita Hayworth E A Redenção De Shawshank virou Um Sonho De Liberdade [The Shawshank Redemption, 1994; dir.: Frank Darabont], Aluno Inteligente virou O Aprendiz [Apt Pupil, 1998; dir.: Bryan Singer] e O Corpo virou Conta Comigo [Stand By Me, 1986; dir.: Rob Reiner].

Esse último é provavelmente o que discute mais abertamente o tema. Afinal, o narrador, Gordon Lachance, é um escritor que relembra um episódio de sua juventude, quando ele e mais três amigos foram procurar o cadáver de um garoto desaparecido. O Corpo aborda, essencialmente, a dificuldade de se traduzir uma experiência em palavras (como no trecho do cervo), e retrata o momento único em que alguém se descobre autor: "Richie levantou as folhas... e devo admitir que não tentei muito tomá-las. Queria que as lesse e ao mesmo tempo não queria — uma mistura estranha de orgulho e vergonha, que sinto até hoje quando alguém me pede para ler o que escrevo. O ato de escrever em si é secreto, como a masturbação [...]. Quando acabou [de ler], Richie olhou para mim de uma maneira nova e diferente que fez com que eu me sentisse muito singular, como se tivesse sido forçado a reavaliar toda a minha personalidade".

A caminho do local onde está o corpo, diante da fogueira, Lachance narra uma de suas histórias, a da vingança de Lard Ass (Rabo Grande na tradução do livro, Bola de Sebo na dublagem em português do filme). Quando termina, Vern e Teddy, seus dois amigos menos "brilhantes", perguntam o que acontece depois. Difícil não associar essa passagem à adaptação cinematográfica de Rita Hayworth E A Redenção De Shawshank. Embora a narração em off de Morgan Freeman reproduza fielmente as últimas linhas da novela, o acréscimo de uma sequência conclusiva (a chegada de Red a Zihuatanejo e seu encontro com Andy) no filme simplesmente arruína o emocionante final aberto original. Talvez os autores de Um Sonho De Liberdade tenham suposto que o público é tão estúpido quando Vern e Teddy (e talvez tenham acertado). Igualmente infeliz é a tentativa do longa de amenizar o crime de Red com o claro intuito de torná-lo mais simpático (nas telonas, o prisioneiro veterano comete um latrocínio no calor do momento; nas páginas do livro, premedita friamente a morte da esposa para receber o dinheiro do seguro) — ao diminuir a culpa do personagem, o roteiro também enfraquece sua transformação.

Rita Hayworth... representa, de certo modo, o polo oposto ao de Aluno Inteligente. Ambas tratam, em última instância, do poder de uma história. Só que, enquanto a saga de Andy Dufresne inspira esperança, a do velho Kurt Dussander corrompe. O garoto Todd Bowen podia já ter algo sinistro dentro de si, mas conforme ele obriga o ex-oficial nazista a contar todas as barbaridades que conduziu nos campos de extermínio, o pior da natureza de ambos vem à tona — aqui, King parece lembrar aos críticos do gênero terror que a História, com maiúscula, é muito mais violenta, apavorante e influente do que qualquer fantasia sobre palhaços assassinos ou meninas telecinéticas.

Storytelling é também o foco da última novela, O Método Respiratório. O advogado David Adley é convidado por um colega a se juntar a um misterioso clube para cavalheiros em Manhathan, em que não há carteirinha, taxa de admissão ou mensalidade. Apesar de dispor de bar inesgotável, ampla biblioteca e outros passatempos, a principal atividade ali parece ser ficar em torno da lareira para ouvir as histórias contadas pelos outros. O sr. McCarron, um dos sócios mais idosos, se voluntaria para cuidar do entretenimento na véspera de Natal, a noite mais aguardada por todos, tradicionalmente reservada a uma história sobrenatural. Ele, então, conta algo que ocorreu quando trabalhava como médico, e acompanhou a gravidez de uma jovem solteira, a quem ensinou o tal método respiratório do título. Ao término da narrativa de McCarron, ainda abalado pelo que acabou de ouvir, David decide fazer algumas perguntas a Stevens, que é aparentemente o único funcionário do local, para tentar desvendar o segredo do clube.

Finda a leitura, dá para imaginar por que O Método Respiratório é a única "estação" que não virou filme. A história do médico tem um final chocante, e mostra o quanto King domina a técnica de criar suspense, mas ela só funciona em conjunto com a história do clube, uma vez que se baseia na expectativa do leitor pela chegada do elemento sobrenatural. A do clube, por sua vez, não possui uma trama propriamente dita, apenas o mistério, e sua resolução certamente frustraria os Verns e Teddys da vida. O clima da novela é semelhante ao de um episódio de Além Da Imaginação ou de um conto de Amazing Stories, duas séries que certamente estiveram entre as favoritas do autor.

Inscrito no arco de pedra sobre a lareira e enunciado pelos membros quando erguem um brinde, o lema do clube é também a epígrafe de Quatro Estações: "O importante é a história, não o narrador". Aplica-se, é claro, às quatro novelas, e parece também complementar o que King diz em On Writing, quando observa que um escritor pode ser formado, mas não feito.

Alguns anos atrás, voltei à praia. Não quis ir até a casa. Acho que no fundo também não importa tanto assim de onde as histórias vêm.

14 de março de 2013

As Vantagens De Ser Invisível

[The Perks Of Being A Wallflower]
Direção e roteiro: Stephen Chbosky
EUA, 2012

É estranho se dar conta de que algo que você costumava fazer quando jovem tornou-se, literalmente, coisa do século passado. A primeira fita cassete que eu gravei para alguém foi, evidentemente, para a primeira garota de quem gostei. Na época, começo dos anos 90, não pude contar com as valiosas dicas para montar repertório elaboradas por Rob Fleming, de Alta Fidelidade, romance que Nick Hornby publicaria lá pela metade da década. Mesmo assim, sem querer acabei seguindo uma delas, a de "começar com um sucesso, para prender a atenção". Escolhi Sombody To Love, e esse foi provavelmente o único título que a garota chegou a ler quando bateu os olhos na capinha (escrita à canetinha, em caligrafia caprichada), já que sua reação foi disparar: "Não suporto Queen, meu ex-namorado vivia escutando". Com um sorriso sem graça, voltei a guardar a fita no bolso, junto com os cacos do meu coração, repassando mentalmente os versos de abertura da coletânea que ela jamais ouviu: "Each morning I get up I die a little"...

Charlie, protagonista de As Vantagens De Ser Invisível, tem mais sorte: sua mixtape consegue impressionar a amiga — e objeto de interesse — Sam: "Nick Drake, The Shaggs... Você realmente tem bom gosto". Embora se passe naqueles últimos dias do mundo sem internet e seja repleto de elementos retrô, como cassetes, fanzines xerocados e montagens de The Rocky Horror Picture Show, não se trata de um filme saudosista. O diretor Stephen Chbosky, também responsável pelo roteiro que adapta o livro homônimo de sua autoria, coloca ênfase não nas coisas em si, mas no que elas significam. A máquina de escrever está lá não só porque é vintage — ela é a ferramenta do escritor por excelência, e simboliza a voz construída laboriosamente, letra por letra ("eu vou", tecla Charlie em determinado momento, com muito mais convicção do que conseguiria verbalizar). Do mesmo modo, o compacto em vinil de Something, dos Beatles, não é só um objeto cool — ao contrário das coletâneas que os personagens vivem trocando, ele representa uma declaração inequívoca, sem rodeios.

Conduzido com habilidade, o longa cativa pela trama tocante e simples (embora haja um desenvolvimento inesperado para os problemas psicológicos do protagonista), e mais ainda pelo trio principal. Logan Lerman [Percy Jackson E O Ladrão De Raios] emprega a dose certa de doçura, esquisitice e alguma comicidade para viver Charlie, calouro que entra para o high school e tem de enfrentar o dilema tipicamente juvenil de ser aceito e, ao mesmo tempo, encontrar a si próprio. Isolado, ele acaba se aproximando de Patrick, o carismático veterano gay que Ezra Miller [Precisamos Falar Sobre Kevin] interpreta com naturalidade, mesmo nos momentos mais afetados. Por tabela, conhece também Sam, meia-irmã de Patrick, por quem imediatamente fica encantado. É significativa a primeira aparição da personagem: radiante, Emma Watson [a Hermione da série Harry Potter] preenche a tela, emoldurada pelo halo criado por um dos holofotes do campo de futebol. A partir daí, a câmera, a exemplo do olhar do protagonista, sempre busca a garota.

A sensação de ser pária, cada qual à sua maneira, é o que primeiro une os três personagens — durante a festa que sela a entrada de Charlie para a turma, Sam lhe diz: "Bem-vindo à ilha dos brinquedos desajustados", numa referência à clássica animação em stop-motion Rudolph, A Rena Do Nariz Vermelho. O filme, porém, acerta ao não reduzir o drama da idade à busca por aprovação. Na sequência do baile, a caminhada desajeitada do protagonista pela pista de dança, ao som de Come On Eileen, do Dexys Midnight Runners, traduz visualmente um aspecto central da adolescência — a torrente de sentimentos que se sobrepõem, os problemas e questionamentos que desaparecem, ainda que temporariamente, numa fração de segundos.

A trilha sonora, aliás, tem papel de destaque. Charlie começa a desenvolver seu próprio gosto ao escutar Asleep em uma mixtape gravada pelo namorado loser da irmã, e consequentemente eleger os Smiths como sua banda preferida. Mais tarde, ele passa a pensar no amor enquanto ouve a seleção de baladas kitsch — incluindo All Out Of Love, do Air Supply — feita por Sam. E finalmente, resolve fazer sua própria coletânea, que entrega para a amiga fingindo casualidade. A música, portanto, é parte do processo de formação, ilustrado pela pilha de cassetes ao lado dos livros na estante do protagonista. E pode, também, ser agente catalizador de transformações, como quando Sam lembra da importância de Pearly-Dewdrops' Drops, do Cocteau Twins, em sua vida, ou, mais obviamente, no caso da "canção do túnel". Esse talvez seja o único momento em que Stephen Chbosky se mostra abertamente saudosista, ao celebrar o triunfo de descobrir, depois de muito tempo, o nome daquela música que você ouviu por acaso no rádio. Tal milagre da descoberta pode ter se tornado raro nesta época de informação imediata via web, mas não impossível, como o diretor mostra ao desenterrar a obscura Could It Be Another Change, do The Samples, para a abertura do filme (que não por acaso tem o túnel como cenário).

Não há nada de errado com a nostalgia por coisas do século passado. Afinal, como Charlie observa, "algum dia, tudo isso vai se tornar um punhado de histórias, e nossas imagens, velhas fotografias". Mas existe um instante mágico em que elas são mais do que meras histórias — e ainda bem que há gente sensível o suficiente para narrá-las.


28 de fevereiro de 2013

Lisa Hannigan

Quer casar comigo, Lisa Hannigan?

Peraí, antes de responder que a gente nem se conhece e tal, você precisa saber que este é um caso de amor à primeira vista. Quero dizer, primeira audição.

Durava só uns vinte e poucos segundos a sua participação em The Blower's Daughter — que eu ouvi na trilha sonora do filme Closer [dir.: Mike Nichols, 2004] —, mas pra mim foi mais do que suficiente. Os seus vocais etéreos, sublinhados pela modulação da harmonia, soavam mágicos, uma espécie de miragem em meio à desolação deprê cantada pelo Damien Rice. E tenho que confessar que, quando assisti ao videoclipe, custei a acreditar que a mulher linda de cabelos esvoaçantes na praia fosse mesmo a dona daquela voz de cortar o coração.

Quando pus as mãos em O [2003], o disco do Damien, fiquei felicíssimo ao descobrir que você cantava em mais faixas, não somente fazendo backing vocals, como em Older Chests e Cheers Darling, mas solando em trechos de I Remember, Cold Water e a minha preferida, Volcano. Na época, eu achava que você não compunha, e que no máximo escrevia alguns versos — impressão causada pela aparição do seu nome nos créditos como autora apenas da letra de Silent Night, versão que transformava a celebração natalina em briga de casal. O segundo álbum do seu parceiro, 9 [2006], já abria com você mandando ver sozinha os primeiros versos da arrepiante 9 Crimes — "me deixe pra fora junto com o lixo"... Será que era um prenúncio do que estava por vir? Porque, embora você participasse de praticamente todas as músicas do novo disco, indicando sua crescente importância no trabalho do Damien, ele não hesitou em te chutar da banda em 2007, minutos antes de uma apresentação em Munique, na Alemanha.

Deve ter sido um momento muito difícil pra você, que cresceu num minúsculo vilarejo no interior da Irlanda e mais tarde voltou pra sua cidade natal, Dublin, com a desculpa de estudar História da Arte — e com a ambição secreta de se tornar cantora. Auspiciosamente, foi em um show que você conheceu o Damien, ex-aluno da faculdade que você frequentava. Logo, os dois estavam andando juntos, fazendo música juntos e dormindo juntos, humpf. Imagino a sensação de sonho realizado quando The Blower's Daughter estourou mundo afora. Mas você já devia ter adivinhado que, com o temperamento controlador e explosivo que o sr. Rice parece ter, as coisas não poderiam acabar bem. É claro que eu passei a considerar o sujeito um idiota — por que diabos alguém em sã consciência iria querer te demitir e, pior ainda, te largar?! Ainda assim, engrossando a lista de motivos pra te admirar, ao longo dos anos você nunca fez, publicamente, nenhum comentário depreciativo sobre o Damien ou a atitude dele. Quanta classe... Eu, em vez de criticar o cara, devia era agradecer. Afinal, ao te dispensar, ele nada mais fez do que te impulsionar em direção à carreira solo — da qual fiquei sabendo quando ouvi o seu primeiro single Lille, uma graciosa canção sobre (surpresa!) seguir em frente após uma separação. Ela era ilustrada por um vídeo com cenas suas folheando livros pop-up tão incrivelmente elaborados que pareciam de mentira.

Com o seu álbum de estreia, Sea Sew [2008], finalmente pude constatar que baita compositora você é, capaz de escrever músicas bem distantes do tom sombrio típico do seu antigo parceiro, empregando cores tão encantadoras quanto as dos seus vestidos pra criar joias como a cantiga de ninar Splishy Splashy, a envolvente Keep It All, a onírica Courting Blues e a singela Venn Diagram (inclusive, a nerdice desse último título lhe rende pontos extras, mocinha). E o bom gosto? Os arranjos recheados de violões, piano, contrabaixo acústico, cello, bandolim, ukulele, harmonium, trompete e outros sons bonitos só realçam o quão sublime é a sua voz. Mas a faixa que mais me pegou foi I Don't Know — pra mim, a melhor tradução da bobeira que é se apaixonar, em versos como: "Eu não sei se você dirige, ou se ama o chão debaixo de você. Eu não sei se você escreve cartas, ou se entra em pânico no telefone. Eu gostaria de te ligar mesmo assim. Se você quiser, eu topo". Não tenho vergonha de dizer que até hoje deixo escapar um sorriso derretido quando chega a parte do "você não sabe se eu durmo de conchinha, ou se durmo mesmo — ou talvez você saberia, talvez saberia". E durante algum tempo, eu não conseguia parar de escutar essa música, ainda mais quando saiu o vídeo: você e a sua banda redecorando um ambiente sem graça com os recortes de cartolina concebidos pela sua conterrânea, a designer Maeve Clancy (a mesma responsável pelos impressionantes pop-ups do clipe de Lille).

A propósito, o seu esmero com a parte estética é mais uma das virtudes que me encantam. Gosto muito da capa de Sea Sew, um bordado que você mesma fez, bem como a do segundo álbum — o ainda mais cativante Passenger [2011] —, que traz um mapa (também criação sua) mesclando os três lugares nos quais a maioria das novas canções foi escrita: Dublin, Brooklyn, em Nova York, e Baltimore, pequena vila de pescadores na Irlanda. Os videoclipes são, pra variar, excelentes, e combinam perfeitamente com o clima de cada faixa: o frenesi de Knots com o banho de tinta (que você espirituosamente reproduziu durante um show na capital irlandesa), a agitação de What'll I Do com o passeio de montanha-russa (acho uma graça quando você não aguenta e para de dublar), a evocação da faixa-título com as cenas da turnê (ei, quando é que você vai vir tocar por aqui?). Aliás, me agrada muito esse conceito de "jornada" que perpassa todo o repertório do álbum — o constante dilema entre ímpeto e saudade, exemplificado por músicas como A Sail (uma das mais bonitas que você já compôs), o dueto com o norte-americano Ray LaMontagne em O Sleep (inspirada na versão do dr. Ralph Stanley pro hino O Death... Sério, você é cool demais), e Safe Travels (Don't Die), com participação do Glen Hansard (soube que vocês fizeram alguns shows juntos este ano, e quase morri quando te ouvi cantando Falling Slowly com ele).

Viu só? Já te conheço um pouquinho — e adoraria saber do resto. De minha parte, sei que não tenho tanto assim pra te oferecer, a não ser, talvez, a possibilidade de você tirar férias no Brasil; o companheirismo durante as excursões nas quais eu puder ir; o compromisso de, nas demais turnês, quando você voltar pra Irlanda, eu estar lá pra te receber com um pint de Guiness ou uma xícara de chá (primeiro o saquinho e depois a água quente, certo?); a promessa de tentar me dar bem com os seus amigos (com o Glen, pelo menos, é certeza) e não odiar o seu ex (bem, eu adoro os discos do cara...).

E uma certeza: você nunca poderá dizer que eu não te escuto.


20 de fevereiro de 2013

20 de fevereiro de 1977


Praça da República, 1977. Fonte: São Paulo Antiga
Caiu em um domingo... de carnaval. Um baile agitava a madrugada nos arredores da maternidade em que eu nasci. Foi o primeiro ano em que o desfile na capital paulista teve como palco a avenida Tiradentes, em vez da São João, como até então havia acontecido desde a oficialização do evento, em 67. Quando chegou a manhã, a Folha de S. Paulo estampava na capa a foto de um folião fantasiado de Carlitos, soprando sua corneta à frente de um bloco — uma ilustração bastante adequada para a reportagem no primeiro caderno que, em tom saudosista, relembrava carnavais passados, quando havia alegria de verdade pelas ruas tranquilas, antes dos "dias de racionalização e de congestionamentos". O trânsito, por sinal, era feito de Fuscas, Chevetes, Fiats 147 e outros modelos, muitos dos quais anunciados nas páginas da Veja, ao lado de propagandas dos jeans US Top, dos cigarros Shelton e do banco Comind. A última edição da revista, que havia chegado às bancas na quarta-feira, trazia entre seus destaques uma matéria sobre um jovem físico inglês em ascensão, chamado Stephen Hawking. Mais à frente, outro übber nerd era mencionado — Isaac Asimov, cujo romance Fundação [Foundation], primeiro volume da série espacial de mesmo nome, figurava entre os livros de ficção mais vendidos. Também faziam parte da lista Morte Na Praia [Evil Under The Sun], mais uma aventura do detetive Hercule Poirot, criado por Agatha Christie, e A Profecia [The Omen], de David Seltzer. Aliás, a versão cinematográfica da história do anticristo Damien, dirigida por Richard Donner, estrearia nas telonas do país naquela semana, disputando as atenções com Todos Os Homens Do Presidente [All The President's Men], de Alan Pakula, com Robert Redford e Dustin Hoffman.

Eram tempos diferentes. Os quatro Beatles ainda estavam vivos. John Lennon encontrava-se em pleno período de reclusão, iniciado depois do lançamento de Rock N' Roll, álbum de covers do gênero, e do nascimento de seu segundo filho, Sean, ambos em 75. Ringo Starr planejava, para o meio do ano, as gravações de seu próximo disco, Ringo The 4th, o primeiro a não incluir sequer uma composição de seus antigos parceiros — e que acabaria se revelando um fiasco. Paul McCartney, após uma bem-sucedida excursão mundial com o Wings, estava prestes a lançar um single com a versão ao vivo de Maybe I'm Amazed, registrada pela banda durante a porção norte-americana da turnê, no ano anterior. Coincidentemente, George Harrison também havia passado pelos EUA em 76, para gravar uma participação no programa Saturday Night Live, como parte da agenda promocional de seu mais recente álbum 33 & 1/3 — na ocasião, apresentou-se ao lado de Paul Simon, tocando belas versões de Homeward Bound, de Simon & Garfunkel, e Here Comes The Sun, dos Beatles.

Outro velho amigo de Harrison, Eric Clapton entraria em estúdio dali a três meses, e pouco depois lançaria um de seus melhores trabalhos solo: Slowhand, que incluiria no repertório sua interpretação para Cocaine, de J. J. Cale, os hits Wonderful Tonight e Lay Down Sally, e pérolas menos conhecidas, como Next Time You See Her e a instrumental Peaches And Diesel. E uma série de outros discos excepcionais chegaria às lojas, como o petardo Let There Be Rock, do AC/DC, com a faixa-título, Hell Ain't A Bad Place To Be e Whole Lotta Rosie; o clássico News Of The World, do Queen, com We Will Rock You, We Are The Champions, Spread Your Wings e duas das minhas músicas favoritas da banda, Who Needs You e It's Late; o jazzy-noir Foreign Affairs, de Tom Waits, com A Sight For Sore Eyes, Barber Shop e Burma Shave; e American Stars N' Bars, mais um acerto na até então impecável discografia de Neil Young, com Homegrown, Bite The Bullet e a magistral Like A Hurricane, bem como Star Of Bethlehem, com a participação especial de Emmylou Harris. A cantora, inclusive, lançaria seu próprio disco, Luxury Liner, com releituras de Pancho & Lefty, de Townes Van Zandt, e Making Believe, de Jimmy Work, além de She e da faixa-título, ambas de Gram Parsons.

Estreias de peso também estavam para acontecer. Egresso da cena londrina do pub rock, Elvis Costello chegaria — ainda sem sua futura banda de apoio, The Attractions — com My Aim Is True, produzido por Nick Lowe e repleto de canções irresistíveis, como (The Angels Wanna Wear My) Red Shoes, Welcome To The Working Week e a balada Alison. Também associado a uma cena (a do clube CBGB, em Nova York), o Television lançaria o influente Marquee Moon, com repertório praticamente todo assinado pelo guitarrista e vocalista Tom Verlaine. Por sua vez, The Jam, liderado por Paul Weller, lançaria não somente o debut In The City como também, seis meses depois, o segundo trabalho, This Is The Modern World. Já bem conhecido por suas insandecidas performances à frente do The Stooges, Iggy Pop faria sua estreia solo de modo semelhante, com dois discos separados por um intervalo de poucos meses: os igualmente poderosos The Idiot e Lust For Life. Tamanha inspiração seria resultado da chamada "fase Berlim", com ele e o amigo David Bowie em retiro na capital alemã, tentando se livrar da dependência química e compondo como loucos. Bowie também tiraria proveito da parceria, lançando, assim como Iggy, dois clássicos: Low, nas prateleiras desde o mês anterior, e "Heroes".

Seria um ano produtivo também para um quarteto nova-iorquino destinado a mudar a história do rock. Após o excelente Leave Home, disponível nas lojas desde janeiro, os Ramones disparariam em novembro o sensacional Rocket To Russia, um dos LPs de maior impacto na minha adolescência — Cretin Hop, Rockaway Beach, Sheena Is A Punk Rocker, Teenage Lobotomy, Do You Wanna Dance?, Surfin' Bird e outras, todas no mesmo álbum?! Conterrâneos dos Ramones e companheiros de cena no CBGB, os Dead Boys apresentariam seu debut, Young Loud And Snotty. Ou seja, o punk rock estava nascendo. Na Inglaterra, duas facetas distintas do gênero ganhariam seus primeiros registros: a veia politizada do The Clash, com seu autointitulado disco de estreia (que, aliás, estava sendo gravado naquele momento), e a anarquia dos Sex Pistols, com seu único LP, Never Mind The Bollocks. E mesmo não sendo exatamente punk, o Motörhead contribuiria para aumentar o barulho com seu primeiro álbum, homônimo.

Ao mesmo tempo, o fim de uma época se aproximava, simbolizado pela morte de Elvis Presley, em agosto — gordo, paranóico, viciado em remédios e solitário em sua mansão. Outras grandes perdas para o rock seriam as de Marc Bolan, do T. Rex, morto em um acidente de carro, e as do vocalista Ronnie Van Zant e do guitarrista Steve Gaines (bem como de sua irmã Cassie, backing vocal), do Lynyrd Skynyrd, vítimas fatais na queda do avião da banda.

Hoje, dois Beatles e três Ramones estão mortos. Não é uma Quarta-Feira de Cinzas, mas nem por isso o dia deixa de ter certo gosto de ressaca. Claro, é inevitável sentir-se nostálgico e melancólico quando se olha para trás — ainda mais no caso de um ano tão agitado quanto 77. Estranho perceber como uma manchete de jornal ou as páginas amareladas de uma revista ganham novas cores, um apelo romântico. Tudo acaba parecendo muito mais importante, significativo. Fica a impressão de que o hoje é só um prazo estendido, que o prato do dia são as sobras do banquete. E que as ambições de ontem vão ficando cada vez mais próximas dos sonhos — improváveis, ilusórios.

Bom, mas se eu consegui transformar um dia ordinário em uma data especial, talvez consiga fazer o mesmo com o amanhã.


14 de fevereiro de 2013

Nove Vidas

Em busca do sagrado na Índia moderna
[Nine Lives — In search of the sacred in modern India]
Autor: William Dalrymple
360 págs.
Companhia das Letras, 2012

Era, dependendo do ponto de vista, uma mercearia que servia bebidas ou um bar que vendia mantimentos. Localizava-se em um barrio afastado de San Juan Viejo e de Santurce — respectivamente, o centro histórico onde se concentram as principais atrações turísticas, e o distrito mais rico e populoso da capital porto-riquenha. Ali, dentre os fregueses que preferiam chamar o estabelecimento de bar, ninguém bebericava uma pinã colada ou algum outro coquetel tropical. Na verdade, qualquer drink colorido acabaria destoando das paredes desbotadas e mesas enferrujadas que caracterizavam aquele casebre meio decrépito.

Não que nós combinássemos muito com o ambiente. Larry, o cara de Washington, até parecia à vontade com sua Medalla Light, a cerveja local, bem semelhante às American lagers com as quais devia estar acostumado. Ainda assim, ele era o estereótipo do gringo: branquelo, com uma coloração rosada devido ao sol do Caribe, camisa polo, bermuda cargo e tênis para trekking, máquina fotográfica a tiracolo. Javier, o único que podia realmente dizer que se sentia em casa, me vigiava com uma expressão divertida, enquanto eu (que com meus olhos puxados já havia atraído as atenções quando adentramos o recinto) investigava o aroma da dose de pitorro, um rum caseiro, que repousava num copo à minha frente. Tomei coragem e entornei o líquido amarelado duma só vez. "Muito forte?", perguntou Larry, me encarando, ressabiado, por sobre os óculos. "Não", disfarcei, "só um pouquinho mais do que eu esperava". Javier me deu um tapa vigoroso nas costas: "Qual é, nosso amigo brasileiro tá acostumado com cachaça! Pra ele, isso é brincadeira". "Ka-sha-sssa", repetiu o gringo, em sua melhor imitação de português. Javier e eu rimos, Larry nos olhando com cara de interrogação.

Conversávamos sobre o moonshine, o uísque fabricado ilegalmente nos EUA, quando um rapaz se aproximou da mesa — moreno, magro, trajando chinelos, jeans e regata surrados. Achei que fosse pedir alguma coisa para os dois turistas, mas foi a "Javí" que ele se dirigiu, como se o conhecesse de longa data. Nascido e criado em San Juan, Javier havia se mudado ainda jovem para Miami, depois Nova York, trabalhando em diversos subempregos até finalmente conseguir se estabelecer como jornalista.

Após as saudações costumeiras, Javier explicou ao seu amigo, em espanhol, que tinha vindo apenas para cobrir o festival de jazz, e que, para aproveitar o dia de folga, estava mostrando o lado menos conhecido da cidade para seus dois colegas. O rapaz, então, nos desejou uma boa estadia e se despediu, em inglês, e logo em seguida foi cumprimentar os outros fregueses, um por um. "Sujeito popular", observou Larry. "A maioria das pessoas por aqui o conhece desde pequeno. A mãe dele é obá, uma espécie de sacerdotisa da religião local", explicou Javier. "Santería?", perguntou o gringo, sem conseguir esconder certa tensão na voz. "Yeah, yeah... E eu pedi pra ele dar uma boa olhada nas caras feias de vocês pra poder fazer uns bonequinhos vudus", zombou nosso cicerone. Rimos, embora Larry ainda parecesse um pouco desconfortável, provavelmente por ignorar que os santeros não são feiticeiros.

Brindamos ao privilégio de ter um nativo entre nós. Sem sua iniciativa de nos apresentar à periferia de San Juan — mesmo que superficialmente, devido ao tempo escasso —, teríamos conhecido apenas o roteiro oficial preparado pela organização do festival. Discutimos as vantagens de desbravar por si próprio uma cidade desconhecida, em vez de seguir as indicações subjetivas de um guia turístico. Constatei, com desânimo, que o mesmo raciocínio poderia ser aplicado ao relato de viagem que eu pretendia escrever — por que alguém iria querer ler uma descrição quando podia muito bem ir ver com os próprios olhos? "Indicações são sempre úteis, mesmo que seja pra ajudar a escolher que lugares não visitar. E no seu caso, é diferente — você vai escrever sobre a sua experiência, não sobre a viagem em si, certo? Além disso, você tem um protagonista totalmente carismático...", disse Javier, batendo no peito, com deboche. "Ei, a ideia deste passeio foi minha. Eu é que sou o protagonista", retrucou Larry, meio brincando. "Esquece, você é só o alívio cômico", sacaneou nosso cicerone, para então completar: "Apenas escreva, cara. No fundo, é tudo literatura. Quero dizer, a Odisseia, de Homero, é um extenso relato de viagem, não é?".

Quase 10 anos depois da visita à capital de Porto Rico, a única coisa que acabei escrevendo a respeito foi um conto meio "bukowskiano" construído para parecer um capítulo extraído de um guia de viagens — prova de que aquela observação acerca da Odisseia e das fronteiras imprecisas entre os gêneros literários realmente ficou na minha cabeça. E ela voltou, durante a leitura de Nove Vidas.

O escocês William Dalrymple é uma espécie de prodígio. Aos 22 dois anos, durante as férias da faculdade de História, ele resolveu refazer a jornada empreendida por Marco Polo no final do século XIII, da Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, até a corte de Kublai Khan, na Mongólia. Dalrymple seguiu os supostos passos do mercador veneziano e registrou tudo, comparando a opulência da antiga rota comercial com a moderna situação dos países que cruzou. O resultado foi In Xanadu: A Quest, publicado dois anos depois [1989] e imediatamente alçado à condição de best-seller. Fascinado pelo Oriente, especialmente pela Índia, para onde acabou se mudando, ele retratou o país em muitas de suas obras seguintes — The City Of Djinns [1994], sobre a capital, Delhi, e a trinca de cunho histórico, formada por The Age Of Kali [1998], White Mughals [2002] e The Last Mughal [2006].

A diversidade religiosa, tão representativa da cultura indiana, é abordada em Nove Vidas, seu primeiro livro a sair no Brasil, e que marca o retorno ao formato de relato de viagem — só que com uma diferença significativa. "Duas décadas atrás, quando meu primeiro livro, In Xanadu, foi publicado, no auge dos anos 1980, os livros de viagem tendiam a pôr em evidência o narrador: suas aventuras eram o tema; as pessoas que ele encontrava eram às vezes reduzidas a objetos de fundo. Com Nove Vidas procurei fazer uma inversão e manter o narrador firmemente nas sombras, trazendo assim as vidas das pessoas que encontrei para o primeiro plano, posicionando suas histórias no centro do palco", explica, na introdução.

E as vidas são, para dizer o mínimo, fascinantes. Dalrymple começa com um "golpe baixo" em A narrativa da monja, comovente capítulo dedicado a Prasannamati Mataji. Ainda criança, ela decidiu abraçar o jainismo, religião que prega o total desapego do mundo físico. Assim, seus seguidores renunciam não somente a todas as posses, passando a praticar o asceticismo e a mendicância, como também a qualquer relação afetiva — eles abandonam suas famílias, adotam o celibato e passam a vida cruzando o país a pé, sem firmar raízes. Após anos obedecendo a todos os preceitos, Prasannamati percebeu que havia falhado em um deles quando Prayogamati — colega que a acompanhou em suas peregrinações e com quem, sem perceber, acabou desenvolvendo uma grande amizade — adoeceu e decidiu fazer o sallekhana, jejum ritual até a morte. "Depois que Prayogamati partiu, não suportei a perda. Chorei, embora não se espere que o façamos. Todas as emoções são consideradas um obstáculo para se chegar à iluminação. Devemos cultivar a indiferença — mas ainda me lembro dela", confessa a monja.

O apelo emocional é também a tônica em As filhas de Yellamma, que narra a história de Rani Bai. Seus pais a consagraram, quando tinha apenas seis anos de idade, para se tornar uma devadasi — nome dado às mulheres que são devotas de uma das deusas do panetão hindu, e que cumprem sua missão oferecendo o corpo em troca de dinheiro. "Pouco depois da minha primeira menstruação, meu pai me vendeu a um pastor de uma aldeia próxima por quinhentas rúpias, um sári de seda e um saco de painço", conta, acrescentando que mais tarde acabou aceitando seu destino; hoje, ela não se considera uma "prostituta comum", e se sente protegida por Yellamma. O capítulo termina com uma revelação surpreendente.

Nove Vidas não se resume a um punhado de perfis de personagens raros. Além de apresentar as narrativas, o autor as contextualiza por meio de um breve histórico das religiões ou tradições que cada uma delas ilustra. E, embora o faça de modo sutil, também confirma sua obra como verdadeiro relato de viagem. Ao longo dos capítulos, o leitor é conduzido pelos quatro cantos da Índia, em um roteiro nada turístico. No sudoeste, no fértil estado de Kerala, fica a cidade de Tellicherry, onde Hari Das trabalha durante a semana cavando poços e, nos fins de semana, como carcereiro numa prisão para criminosos de uma facção de extrema direita. Uma vez por ano, no entanto, ele assume sua verdadeira vocação e se torna um theyyam, dançarino que incorpora uma divindade. No nordeste, em meio a uma floresta escura na região de Bengala, fica o terreno de cremação de Tarapith, onde vive Manisha Ma Bhairavi, uma sacerdotisa tantrista que, nas noites sem lua, participa de um ritual que envolve sacrificar animais e beber seu sangue em crânios humanos. A noroeste, além da fronteira com o Paquistão, fica Sehwan Sharif. É o local do templo dedicado a um santo sufi (vertente mística e sincrética do islamismo), e onde geralmente se encontra uma mulher gorda, vestida de vermelho e carregando um bastão de madeira, chamada Lal Peri Mastani, mais conhecida como a Fada Extática Vermelha. No norte, em Dharamsala, junto ao Himalaia, na única parada mais óbvia da viagem, está McLeod Ganj, a sede do governo tibetano no exílio. É lá também que vive Tashi Passang, monge budista que, no início dos anos 1950, abriu mão de seus votos e da pureza de seu karma para pegar em armas contra o exército chinês e, assim, assegurar a fuga do Dalai Lama.

"Ao situar muitas das histórias nos aspectos mais obscuros e menos românticos da moderna vida indiana, com cada personagem contando sua história, e somente com a estrutura criada pelo narrador, espero ter evitado muitos dos clichês acerca da 'Índia mística' que tanto arruínam os textos ocidentais sobre a religião indiana", aponta Dalrymple, na introdução. De fato, o autor consegue fugir da visão mais tradicionalista ao retratar o quanto a própria tradição tem sido abalada pelo processo de crescimento econômico e avanço tecnológico do país. Exemplo disso é o protagonista do capítulo O fabricante de ídolos, Srikanda Stpathy, cujo clã há quase 10 séculos tem se dedicado à produção de estátuas de deidades em bronze. O ofício, transmitido de geração para geração, corre o risco de acabar, uma vez que o filho de Srikanda tem outros interesses. "[Meu pai] não me deu escolha. Não vou fazer o mesmo com meu filho. [...] Certamente vou me assegurar de que ele tenha a habilidade — e ele já é capaz de fazer bons modelos de cera. Mas, se ele tiver boas notas e a chance de estudar engenharia da computação na universidade, seria injusto negar-lhe a oportunidade que deseja", afirma o artesão.

Como o próprio escritor nota, apesar de todas essas transformações, as questões permanecem as mesmas, milenares — o confronto entre pai e filho, velho e novo, sagrado e mundano. "A água segue adiante, um pouco mais veloz do que antes, porém o grande rio ainda corre. Ele é fluído e imprevisível em seus estados de espírito como sempre foi, mas serpenteia entre margens familiares", conclui Dalrymple. São palavras que, em termos de beleza, não deixam nada a desejar aos mais famosos poemas do hinduísmo. Ou da Grécia Antiga.

1 de fevereiro de 2013

Cosmos: A Personal Voyage

Direção: Adrian Malone
Roteiro: Carl Sagan, Ann Druyan e Steven Soter
EUA, 1980

Talvez eu pudesse ter sido cientista. Nunca consegui aprender coisas que pareciam elementares para as outras crianças, como andar de bicicleta, bater figurinha ou chutar a bola na direção do gol. Por outro lado, ainda pequeno, aprendi o significado de uma palavra difícil como "entomologista". E decidi que era isso o que eu queria ser. Foi depois de uma visita ao zoológico, onde, em um formigueiro artificial, era possível observar todas as câmaras e túneis da colônia de insetos — que, segundo me explicaram, era um sociedade totalmente organizada: as operárias recolhiam a comida, os soldados cuidavam da proteção, os machos cortejavam a rainha (isso significava, é claro, que sua função era a reprodução, mas eu inocentemente pensava neles como cavaleiros da corte; afinal, eles tinham asas!), e a rainha, por sua vez, só comia e tinha bebês-formiga. "Uau, eu podia ficar o dia inteiro olhando esses carinhas!". Resolvido, então: entomologista.

Algum tempo depois, foi a vez da arqueologia. Ganhei um livro daqueles com capa e páginas duras, todo colorido e ilustrado, que mostrava as diferentes espécies de dinossauros. E tome palavra difícil: tricerátops, protostega, arqueoptérix... Um dos meus favoritos era o paquicefalossauro: a parte de cima do seu crânio era extremamente grossa, como um capacete, e alguns estudiosos acreditavam que o animal usava essa protuberância como arma em disputas com outros da sua espécie. O desenho retratava justamente a hipotética luta entre dois paquicefalossauros, batendo suas cabeças uma contra a outra. "Lógico que era pra isso que eles usavam, pra que mais ia servir uma cabeça de capacete?!". Parecia igualmente divertida a vida de arqueólogo: descobrir esqueletos e imaginar como teriam sido aquelas criaturas estranhas.

A visita ao zoológico e o livro dos dinossauros tiveram, portanto, papel fundamental na minha nerdice. Não foram poucas as tardes em que, enquanto a molecada jogava futebol ou taco na rua, eu ficava sozinho no jardim de casa, investigando os insetos debaixo das pedras ou encontrando pequenos fósseis de hominídeos (os bonequinhos que eu mesmo havia enterrado no dia anterior). De vez em quando, a gritaria que vinha lá de fora me fazia, por um instante, ter vontade de sair e me juntar à algazarra. Mas logo alguma coisa me chamava a atenção — "ei, um tatu-bola!" — e eu voltava a mergulhar naquele mundinho.

É um pouco como me sinto na faculdade. Enquanto meus amigos normais estão assistindo à final do campeonato ou ao novo episódio de The Big Bang Theory, fico sentado durante três horas, ouvindo sobre oclusivas, fricativas e africadas, ou sobre Saussure, Chomsky e Hjelmslev (ainda as palavras difíceis...), e penso que preciso de uma cerveja. Mas logo alguma coisa me chama a atenção — "ei, o albatroz do Baudelaire!" — e eu volto a mergulhar. Assim, não é de se espantar (muito) que, depois de um semestre especialmente positivo, eu tenha resolvido me recompensar da maneira mais nerd possível: reservando um horário na grade para me divertir com alguma disciplina fora do meu currículo obrigatório. Examinando a lista de opções, detive-me em uma delas: Princípios de Astronomia.

O espaço demorou para me conquistar. Quero dizer, como todo garoto, sempre fui fascinado pela parte da fantasia — Star Wars e tantos outros filmes, séries, livros e quadrinhos. A realidade, por outro lado, era apenas... frustrante. Meu pai comprou uma luneta e, nas noites de céu limpo, ele a armava no quintal. Fiquei impressionado da primeira vez em que vi mais de perto a Lua com suas crateras, mas logo comecei a me perguntar: "Por que eles não mandam mais astronautas pra lá, ou então pra outros planetas? Por que perdem tempo com sondas sem graça?". Passei a acreditar que os cientistas espaciais eram um bando de chatos, até entrar em cena outra figura-chave para a minha nerdice: Carl Sagan [1934-1996]. PhD em Astronomia e Astrofísica, consultor da NASA, professor e escritor, Sagan conseguiu a proeza de introduzir em milhões de lares conceitos como Big Bang, explosão cambriana, DNA, sólidos platônicos e teoria da Relatividade, entre muitos outros, por meio de sua série Cosmos: A Personal Voyage. Dividida em 13 episódios de uma hora cada, foi exibida originalmente nos EUA em 1980. Chegou à tevê brasileira (passava na Globo, nos domingos à noite, depois do Fantástico) ainda no início daquela década — o ano exato me escapa, mas me lembro perfeitamente de aprender, com assombro, que há mais estrelas no universo do que grãos de areia em todas as praias da Terra, de ficar encantado com uma animação que resumia bilhões de anos de evolução das espécies em poucos segundos, e de temer que uma guerra nuclear pudesse pôr fim a tudo antes que o homem explorasse outras galáxias.

De repente, aos meus olhos, a família de estrelas, incluindo as parecidas com o Sol, as anãs brancas, as gigantes vermelhas e as pulsares, se tornou uma espécie de sociedade organizada interessante de se observar. De repente, era possível descobrir planetas e imaginar como seria a vida naqueles mundos estranhos. E isso graças a um cientista espacial que defendia a razão acima da crendice, e ao mesmo tempo acreditava que existia vida fora da Terra e que valia a pena procurar por ela. "Queremos buscar a verdade, não importa aonde ela nos leve. Mas para encontrá-la, precisaremos tanto do ceticismo quanto da imaginação. Não teremos medo de especular, mas teremos o cuidado de distinguir a especulação do fato", anuncia Sagan logo no primeiro episódio, The Shores Of The Cosmic Ocean [O Litoral Do Oceano Cósmico]. Talvez a melhor forma de ilustrar tal espírito investigativo seja mesmo o "veículo" que ele propõe para a jornada pelo cosmos: a nave da imaginação, "livre dos limites ordinários de velocidade e tamanho, impulsionada pela música da harmonia cósmica, capaz de nos levar a qualquer lugar e época". Hoje, o visual da nave, os efeitos especiais (então inovadores) e a trilha sonora new age composta por Vangelis — que se tornou mundialmente conhecido a partir dali — parecem datados. O mesmo não ocorre com o conteúdo do programa, como observa a corroteirista (e viúva de Sagan) Ann Druyan, na introdução gravada para uma reedição especial: "Mesmo após 20 dos mais movimentados anos na história da ciência, Cosmos requer poucas revisões e sem dúvida é rico em profecias". Mas não é apenas no caráter visionário como cientista que se resume o mérito de Sagan.

Com seu jeitão de nerd e seu blazer bege, ele conduz a série de modo didático, sem afetação e cheio de um entusiasmo contagiante. Depois de sua explicação sobre como o grego Eratóstenes de Cirene, diretor da Biblioteca de Alexandria, deduziu que nosso planeta é redondo (também em The Shores Of The Cosmic Ocean), fica difícil não partilhar da admiração de Sagan por esse homem que, mais de dois mil anos atrás, conseguiu calcular corretamente o diâmetro da Terra usando apenas "varetas, olhos, pés e cérebro". Difícil também não se divertir quando o astrônomo conta que, ainda criança, começou a se interessar pelo espaço e foi procurar um livro sobre as estrelas, ao que a bibliotecária lhe entregou uma revista sobre atrizes de Hollywood — no episódio The Backbone Of Night [A Espinha Dorsal da Noite], que, entre outros temas, retrata como os pitagóricos, na Antiguidade, defendiam o controle do conhecimento por parte de um elite, e como esse pensamento herdado pelos cristãos impediu o avanço científico durante séculos. O apresentador narra, ainda, outra lembrança de infância: influenciado pelas aventuras de John Carter, personagem criado pelo escritor Edgar Rice Burroughs, certa vez ergueu os braços para o céu, assim como Carter, desejando viajar para Barsoom — no episódio Blues For A Red Planet [Blues Para Um Planeta Vermelho], que descreve desde as pesquisas de Percival Lowell, no final do século XIX, acerca dos supostos canais em Marte, e as experiências de Robert Goddard, já na década de 1920, com a construção de foguetes, até o projeto das duas sondas Viking, enviadas pela NASA ao planeta vermelho nos anos 70, resultando nas primeiras fotos da sua superfície.

Além do carisma, Sagan consegue ganhar o espectador pelo discurso. Ele é capaz de disparar frases de efeito — "se você quiser fazer uma torta de maçã a partir do zero, primeiro precisa criar o universo", brinca, em The Lives Of The Stars [As Vidas Das Estrelas] — e argumentos irresistíveis, como seu comentário sobre as teorias criacionistas, em The Edge Of Forever [A Beira Do Eterno]: "Em muitas culturas, a resposta habitual [à questão sobre nossa origem] é a de que um deus ou deuses criaram o universo do nada. Mas se quisermos investigar corajosamente, nós devemos, é claro, passar à pergunta seguinte: de onde Deus veio? Se decidirmos que essa é uma pergunta sem resposta, por que não economizar uma etapa e concluir que a origem do universo é uma pergunta sem resposta? Ou se dissermos que Deus sempre existiu, por que não economizar uma etapa e concluir que o universo sempre existiu?". Muitas vezes, ele consegue também soar poético. Prova disso é a infinidade de vídeos que pululam por aí tentando ilustrar sua reflexão sobre o Pale Blue Dot, o célebre retrato tirado pela sonda Voyager 1 em que a Terra aparece como o tal "pálido ponto azul".

Cosmos é bem escrito inclusive em termos de narrativa. O episódio Harmony Of The Worlds [Harmonia Dos Mundos], por exemplo, começa com a afirmação de que "há dois modos de ver as estrelas: como elas realmente são e como nós gostaríamos que elas fossem", seguida por uma crítica à astrologia, a "pseudociência" que "parece emprestar um significado cósmico à nossa rotina diária". O apresentador fala então sobre as constelações, tomando como exemplo a que é conhecida nos EUA como Big Dipper, devido ao seu formato, semelhante ao de uma concha de cozinha. Os franceses, ele prossegue, em uma analogia semelhante, a chamam de La Casserole [A Caçarola]. Para os ingleses da Idade Média, no entanto, o grupo de estrelas parecia um arado; para outros povos da Europa, era uma carruagem; para os gregos, a cauda de uma ursa; para os chineses, um burocrata sentado em uma nuvem, seguido por dois peticionários (?!). "Algumas pessoas acreditam que essas coisas realmente estão no céu, mas nós é que as colocamos lá em cima", observa Sagan. Na sequência, aborda as primeiras descobertas astronômicas. Em especial, as de Johannes Kepler, cuja trajetória é contada por meio de uma dramatização. Para Kepler, o universo refletia a perfeição divina e, portanto, tinha de seguir um padrão geométrico: as órbitas dos seis planetas conhecidos em sua época deviam, ele acreditava, estar relacionadas às seis formas perfeitas chamadas de sólidos platônicos. Após décadas de cálculos infrutíferos, o matemático e astrônomo alemão se viu forçado a reconhecer que as órbitas, lamentavelmente, só podiam ser elipses, e foi então que pôde formular, com sucesso, suas três leis do movimento planetário. "Quando ele descobriu que suas tão estimadas crenças não estavam de acordo com a observação mais precisa, ele aceitou os fatos incômodos. Ele preferiu a dura verdade do que suas mais caras ilusões. Esse é o espírito da ciência", o apresentador conclui.

No último episódio, Who Speaks For Earth? [Quem Fala Pela Terra?], Sagan retorna à Biblioteca de Alexandria, visitada no primeiro da série. Dessa vez, ele examina como as grandes descobertas feitas dentro daquelas paredes jamais foram utilizadas para beneficiar a população, sendo aplicadas somente "para aprimorar armas, encorajar a superstição e entreter reis". No século 5 EC, a tensão social e política entre o ainda pagão Império Romano e o Cristianismo, então uma força em ascensão, resultou no assassinato de Hipátia, a última diretora da Biblioteca, por uma turba de seguidores do católico Cirilo, bispo local. Um ano depois, a própria Biblioteca foi destruída. De seu vasto acervo, restaram somente míseros fragmentos das obras de alguns dos maiores pensadores e autores da Antiguidade. "É mais ou menos como se os únicos trabalhos preservados de um homem chamado William Shakespeare fossem Coriolano e O Conto Do Inverno, e nós tivéssemos apenas ouvido falar que ele havia escrito outras peças bastante elogiadas em seu tempo, como Hamlet, Macbeth, Sonho De Uma Noite De Verão, Júlio César, Rei Lear...", compara o apresentador. O paralelo é uma forma de ilustrar como "o medo, a ignorância ou a sede de poder" podem exterminar o conhecimento, e serve para sustentar sua crítica à corrida armamentista promovida pela Guerra Fria. "Hoje, dois megatons é o equivalente a uma única bomba termonuclear — uma única bomba com o poder de destruição da Segunda Guerra Mundial inteira", ele aponta. "Mudanças fundamentais na sociedade são algumas vezes rotuladas como impraticáveis ou contrárias à natureza humana. Como se a guerra nuclear fosse praticável, como se houvesse apenas uma natureza humana! Mas mudanças fundamentais claramente podem ser feitas, nós estamos cercados por elas", afirma, citando o fim da escravidão, a dimunuição do abuso às mulheres e o surgimento da consciência ambiental. É emocionante pensar que, menos de uma década após a primeira exibição de Cosmos, o Muro de Berlim caiu, simbolizando o fim da Guerra Fria e reafirmando que, sim, é possível mudar.

Provavelmente, eu odiaria a Biologia e a Química envolvidas na formação de um entomologista ou de um arqueólogo. E com certeza desistiria de ser astrônomo logo à primeira menção de uma fórmula de Física ou Matemática. Minha visão infantil e romantizada dessas profissões não tardaria a ser desfeita. Mas agora eu consigo enxergar o que realmente me atraiu nelas — foi a possibilidade de imaginar novos mundos, debaixo da superfície ou além do espaço, e quem sabe explorá-los. Mais do que o conhecimento dos astros, foram os mistérios entre o ceú e a terra que me interessaram. É emblemático, portanto, o fato de que o primeiro cientista que me cativou foi não apenas um especialista em estrelas, mas também um tremendo contador de histórias.

Deixei os Princípios de Astronomia de lado e me matriculei em outra disciplina, chamada Shakespeare: Obra e Crítica. Acho que Carl Sagan teria me entendido.

22 de dezembro de 2012

I Know What Love Isn't

Artista: Jens Lekman
Service/Secretely Canadian, 2012

É provável que já tenha acontecido com você: um dia, seus amigos decidem que a sua fase de reclusão, motivada por um traumático fim de relacionamento, durou o suficiente e que é hora de você sair da toca e conhecer gente. Ou ao menos ver gente. De algum modo, eles o convencem a ir a uma festa, e a princípio parece até uma boa ideia. Mas logo fica evidente o seu descompasso com a humanidade — você odeia e ao mesmo tempo inveja todas aquelas pessoas descontraídas fazendo a sua miséria parecer inadequada. A sensação é a de estar gripado em pleno verão. A única saída, portanto, é alegar dor de cabeça, voltar para casa e enfrentar o resto da noite sozinho com, digamos, uma garrafa de bourbon e uma pilha de discos de fossa.

"Uma pilha" não é exagero. A seleção de músicas para ouvir no fundo do poço é interminável. Afinal, há desde os álbuns que soam dolorosos por razões pessoais — como, por exemplo, o que marcou as férias de fim de ano em que vocês se conheceram, ou o da cantora de quem vocês viram o show juntos — até aqueles que são fruto de uma crise parecida com a sua, ou seja, foram produzidos por artistas na pior. Dentro desse segundo grupo, alguns acabaram se tornando clássicos, como In The Wee Small Hours [1955], que Frank Sinatra lançou na esteira de seu divórcio da atriz Ava Gardner, e Blood On The Tracks [1975], no qual Bob Dylan escreveu letras deprê sobre perda e separação, refletindo o período de turbulência vivido então em seu casamento, que acabaria pouco tempo depois.

E o "gênero" continua rendendo. Dentre os exemplos mais recentes, há o comovente The First Days Of Spring [2009], da banda indie Noah And The Whale, praticamente uma crônica sobre o fim da parceria romântica e artística entre o vocalista Charlie Fink e a também cantora Laura Marling, narrado sob o ponto de vista dele; e a breve discografia do duo de alt-country The Everybodyfields, que acompanha a trajetória do casal Sam Quinn e Jill Andrews — eles ainda estavam juntos quando gravaram o álbum de estreia, Halfway There: Electricity & The South [2004]; terminaram a relação, mas decidiram continuar com a banda, projetando toda sua desilusão nas letras do segundo disco, Plague Of Dreams [2005]; a estratégia não deu certo, e as constantes brigas entre os dois chegaram a interromper as gravações do seguinte, o maravilhoso Nothing Is Okay [2007], este sim um álbum escancaradamente confessional, amargo e, infelizmente, o último deles como dupla.

Não se trata, necessariamente, de identificação literal. Para se emocionar com a canção, você não precisa ter vivido exatamente a mesma situação, por exemplo, que Charlie Fink descreve em versos como "na noite passada, dormi com uma estranha pela primeira vez desde que você se foi". A questão é empatia — você ouve uma combinação de letra, melodia e arranjo e pensa que aquele sujeito cantando sabe bem o que você está sentindo, e o entende melhor do que os seus amigos. Bons compositores de música de fossa conseguem transformar o absolutamente particular em universal.

O sueco Jens Lekman domina como poucos essa arte. Ele é capaz de usar um acidente doméstico envolvendo uma faca e um abacate (?!) para compôr uma balada apaixonada — a adorável Your Arms Around Me, do álbum Night Falls Over Kortedala [2007] — ou de criar uma pérola pop — Waiting For Kirsten, do EP An Argument With Myself [2011] — narrando uma tentativa de encontrar Kirsten Dunst em Gothenburg, na ocasião em que a atriz esteve na Suécia para filmar o longa Melancholia, de Lars Von Trier. Ao valer-se desses episódios tão específicos, Jens faz mais do que simplesmente soar autobiográfico — as cenas peculiares pintadas por ele são como instantâneos que ilustram um sentimento comum, uma experiência que qualquer um pode ter vivenciado. Por exemplo: mesmo morando em uma cidade em que não há bondes, é fácil se pegar suspirando de solidão e nostalgia ao escutar a linda Tram #7 To Heaven, do disco When I Said I Wanted To Be Your Dog [2004]. E, como se isso não bastasse, vez ou outra ele ainda dispara um verso matador — não dá para deixar de sorrir ao ouvi-lo cantando "sim, eu fui preso, e usei o meu único telefonema pra dedicar uma canção pra você na rádio" em You Are The Light (By Which I Travel Into This And That), de Night Falls Over Kortedala.

Com essa personalidade romântica e meio boba (tá legal, isso foi uma redundância) que ele deixa transparecer nas composições, não é de se espantar que Jens tenha produzido um disco de fossa tão... estranho. E ao mesmo tempo, tão bonito. I Know What Love Isn't é um album "inteirinho sobre corações partidos", nas palavras do autor, produto da "pior separação" que ele já viveu. Ainda assim, há poucos momentos de melancolia explícita, talvez em três ou quatro faixas, no máximo. Entre elas, I Want A Pair Of Cowboy Boots, na qual confessa que "você estava no meu sonho na noite passada, assim como em todas as outras noites nos últimos dois anos"; mais tarde, no refrão, ele conclui que "no meu próximo sonho, quero um par de botas de cowboy, do tipo que caminha pelas mais retas e mais estreitas rotas — qualquer lugar que não seja de volta pra você".

A razão para a aparente escassez de tristeza é explicada pelo próprio Jens em uma entrevista: "a música pode fazê-lo se sentir melhor, desde que você tenha alguma perspectiva sobre as coisas; mas quando eu estava bem no meio do furacão, eu só conseguia encontrar conforto nas atividades físicas. Então, eu comecei a fazer flexões, o que foi algo completamente novo pra mim, e eu amei como isso me deixava exausto e liberava um bocado daquelas doces substâncias químicas no corpo, levando embora boa parte da preocupação e da dor. A música só veio bem depois". A "terapia" é descrita em versos na faixa Every Little Hair Knows Your Name: "eu comecei a malhar quando nós terminamos. Eu consigo fazer cem flexões, provavelmente conseguiria duzentas se estivesse entediado. Eu escrevi algumas canções quando nós terminamos. Mas não veio nada, então eu parei".

O resultado é que I Know What Love Isn't é um disco sem tantas lamúrias, como se fosse um filme ou um romance que tirasse o foco do drama em si e o concentrasse em como o protagonista tenta se livrar do fardo. No caso de Jens, pode ser de muitas maneiras: desde propor casamento à melhor amiga só para obter uma cidadania estrangeira — como ele narra na faixa-título — até retribuir a gentileza da amiga Tracey Thorn, ex-vocalista do Everything But The Girl, que em sua música Oh, The Divorces, do disco solo Love And Its Opposite [2010], havia escrito: "oh, Jens, oh, Jens, suas canções parecem olhar através de lentes diferentes; você ainda é tão jovem, o amor acaba tão facilmente quanto começa". Em Become Someone Else's, Jens responde: "o que Tracey escreveu a meu respeito é verdade — tudo depende das lentes através das quais você olha. Mas tudo o que sei sobre o amor, eu aprendi com você, Tracey".

Quem sabe a parte mais fácil no fim de um relacionamento seja justamente ficar na fossa, bebendo sozinho e se lamentando ao som de canções tristes. Mais difícil é tocar a vida, conciliando os inevitáveis momentos de depressão com as obrigações profissionais e sociais. Mas, eventualmente, um dia você acaba se dando conta de que o mundo, afinal, segue em frente. Pode ser que essa percepção venha de modo inesperado, como Jens descreve em The World Moves On: em meio à mais intensa onda de calor já vivida nos últimos anos na Austrália (onde ele morou durante algum tempo), deitado no chão, com um pacote de ervilhas congeladas na testa, e de repente, a revelação: "você não supera um coração partido, apenas aprende a carregá-lo graciosamente".

Se isso for muito "verão" pra você, talvez seja reconfortante lembrar que na Suécia faz frio o tempo todo.