17 de julho de 2012

Shame

[Idem]
Direção: Steve McQueen
Roteiro: Abi Morgan e Steve McQueen
Reino Unido, 2011


Existe uma carga de sofrimento físico e emocional na cena que Haruki Murakami narra em Norwegian Wood: "Eu a beijei e envolvi seus seios macios com as mãos. Ela segurou meu pênis já duro. Sua fenda estava morna e molhada e me chamava. Apesar disso, quando a penetrei, ela se retesou de dor. [...] No final, Naoko me agarrou com mais força, gritando. De todos os gritos que escutei durante orgasmos, o seu foi o mais triste".

Já Pedro Juan Gutiérrez escancara a putaria em sua Trilogia Suja de Havana: "Veio abrir a porta de calcinha e sutiã, meio molhada, e quase nem falamos. Foi uma boa foda. [...] Gosto dessa mulher. Vira de costas para que eu coma sua bunda. Já tinha me falado que com seu marido — ela tinha casado três anos antes — não conseguia. O negro tinha uma pica de negro e isto impedia algumas acrobacias".

José Saramago, por sua vez, transforma volúpia em mistério no Evangelho Segundo Jesus Cristo: "E ele aí o tinha, o seu corpo, tenso, duro, erecto, e sobre ele estava, nua e magnífica, Maria de Magdala, [...] então sentiu que uma parte de seu corpo, essa, se sumira no corpo dela, que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um estremecimento o sacudia por dentro, como um peixe agitando-se, e que de súbito se escapava gritando, impossível, os peixes não gritam, ele, sim, era ele quem gritava".

Sexo nunca é só sexo. Todo ato é movido, ainda que não declaradamente, por algo mais, seja sentimento ou necessidade. É assim na vida real e, em especial, na ficção, como exemplificam os três escritores citados acima. Murakami usa-o como elemento complicador na já atribulada relação entre Toru, o protagonista e narrador, e Naoko, a namorada de seu melhor amigo, que havia se suicidado — quando transam, ele descobre que ela ainda é virgem e, portanto, está violando ao mesmo tempo a memória do amigo e o corpo da garota. Gutiérrez o reduz a instinto e, com isso, paradoxalmente amplia seu escopo — uma vez que a promiscuidade do protagonista é um alívio para suportar a falta de perspectivas e uma forma de sobressair perante outros machos, simboliza também a busca inconsciente e primitiva por continuidade, sobrevivência. Saramago saca-o de seu arsenal de sacrilégios — ao despojar Jesus de sua castidade, Maria de Magdala está fazendo mais do que humanizá-lo; está mostrando que é a carne, não a herança divina, que eleva o Cristo.

Tão importante quanto o quê dizer é como dizer. Escolher "orgasmo" em vez de "gozo", ou "pica" em vez de "pênis", não é mera questão de estilo. O tom formal e às vezes caloroso de Murakami é adequado ao narrador que quer manter algum distanciamento do passado para tentar analisá-lo, sem conseguir, contudo, deixar de sucumbir ao sentimentalismo aqui e ali. A vulgaridade de Gutiérrez faz com que as peripécias sexuais de seu personagem soem apropriadamente como bravatas, assim como a profusão de cheiros e secreções reforça o quanto elas beiram o animalesco. E não é à toa que Saramago recorre a imagens pinçadas do repertório bíblico, como fogo e peixes "milagrosos", para confundir sagrado e mundano e pintar o sexo como experiência reveladora.

Nem "orgasmo" nem "gozo"; em Shame, a escolha do cineasta Steve McQueen está mais para "la petite mort": sofisticada e com diferentes possibilidades de leitura. Para começar, há a ligação entre sexo e morte na qual a metáfora francesa se baseia. Eros e Thanatos são, segundo os freudianos, as pulsões de vida (com sua propagação por meio do sexo) e de morte (com todas as formas de autodestruição aí incluídas) que impelem o nosso comportamento. E elas estão sempre presentes no filme, como na clara oposição entre Brandon [Michael Fassbender, mais uma vez excepcional], o executivo bem-sucedido que sofre de hipersexualidade, e sua irmã Sissy [Carey Mulligan], a cantora com tendências suicidas. Estão, também, na sequência inicial no metrô, em que Brandon olha, pensativo, para um velho adormecido no vagão e então desvia o olhar para o outro lado, onde uma desconhecida sorri e flerta com ele. Mas, assim como acontece com a psiquê humana, as coisas não são tão simples quanto aparentam.


O tempo todo, McQueen tenta mexer com a percepção do espectador. Ao mostrar sem pudores Brandon urinando ou em cenas de nu frontal, o diretor parece perguntar: por que ver um homem no banheiro deveria causar maior estranheza do que vê-lo transando? Por que a nudez dele deveria parecer mais gratuita do que a de Sissy? Ela, inclusive, está nua logo em sua primeira aparição — assim, de repente, sem preliminares. Em seguida, surge em uma camiseta transparente. Mas a personagem só se "despe" de verdade quando está vestida e interpreta uma emocionante versão de Theme From New York, New York, numa longa sequência em que pouco mais do que seu rosto ocupa a tela. Uma espécie de sedução às avessas.

Planos demorados e quase estáticos, aliás, são recorrentes no trabalho de McQueen. Em seu filme anterior, Hunger [2008], uma extensa tomada com o mesmo enquadramento servia para ilustrar as firmes posições ideológicas de cada um no duelo verbal entre o manifestante do I.R.A. Bobby Sands [Fassbender] e o padre Dom [Liam Cunningham]. Em Shame, o artifício tem outros objetivos. Numa das únicas cenas de sexo das quais Brandon não participa, ele sai para uma sessão noturna de jogging, enquanto a câmera o segue pelas ruas de Nova York durante tediosos minutos — só resta imaginar que a mente do personagem, assim como a de quem assiste, não deixou o apartamento nem por um segundo. Em outra tomada sem cortes, o personagem tem um encontro com uma mulher e, ao longo do jantar, conforme os dois driblam o constrangimento inicial (e as interrupções do garçom inconveniente), o quadro vai se fechando, de modo lento e sutil, no casal. Tão importante quanto o quê dizer é como dizer...

E o "o quê", afinal, não se resume ao sexo — que, para o protagonista, é mais do que satisfação física. É um exercício de poder, como na noitada com o chefe ou, mais tarde, no bar no qual uns valentões jogam sinuca. É uma forma de manter-se no comando em um jogo em que ele mesmo estipula as regras, como na transa com a "amiga" chamada para consolá-lo após uma frustração. É um ritual, como na masturbação diária ou na sequência inicial, em que a trilha sonora (o metrônomo soa como o tique-taque de um relógio) e a repetição das mesmas cenas (as cortinas sendo abertas, a caminhada do quarto para a cozinha, a secretária eletrônica, o som da torneira) sugerem uma rotina mecânica. É sexo, mas poderia ser bebida, trabalho, coleção de selos ou qualquer outro vício escapista que criasse a ilusão de sentido no caos. Ilusão esta que se desfaz com a chegada de Sissy.

Embora à primeira vista representem posições antagônicas — ele, o controle; ela, a inconsequência —, os irmãos são mais semelhantes do que conseguem perceber. Sissy busca atenção do mesmo jeito que Brandon busca aqueles instantes de excitação. São ambos fugitivos de um passado possivelmente traumático. "Não somos pessoas ruins. Apenas viemos de um lugar ruim", diz Sissy. Porém, mais uma vez evitando o lugar-comum, McQueen recusa-se a dar maiores explicações e mostra apenas um recorte da história. Ao não oferecer uma conclusão para o filme, o diretor priva o público do orgasmo. A finalidade aqui não é o prazer.