29 de março de 2013

On Writing + Quatro Estações









On Writing – A Memoir Of The Craft
Autor: Stephen King
384 págs.
Hodder & Stoughton, 2000









Quatro Estações
[Different Seasons]
Autor: Stephen King
538 págs.
Livraria Francisco Alves, 1991


"Olhei mais uma vez a sanguessuga morta em cima de um dos arbustos pisoteados sobre os quais havíamos pulado, gritando e chorando. Tinha um aspecto menos intumescido... mas ainda sinistro.
Quatorze anos depois editei meu primeiro romance e fiz minha primeira viagem a Nova Iorque.
[...] Keith, meu editor, parecia encantado em me ciceronear. A última coisa de turista que fizemos foi um passeio de barco até Staten Island, e encostado no parapeito por acaso olhei para baixo e vi uns vinte preservativos usados boiando suavemente avolumados. Foi um momento de recordações — talvez na verdade tenha sido uma viagem através do tempo. De qualquer maneira, por um segundo voltei literalmente ao passado, parando na metade daquela margem e olhando para trás para a sanguessuga: morta, menos inchada... mas ainda sinistra.
Keith deve ter visto algo em meu rosto, pois disse:
 — Nada bonito, não é?
Apenas balancei a cabeça, querendo lhe dizer que não se desculpasse, querendo lhe dizer que você não precisa ir a Nova Iorque e passear de barco para ver camisinhas usadas, querendo dizer: O único motivo pelo qual uma pessoa escreve é para entender o passado e preparar-se para futuras perdas; por isso todos os verbos dos romances são no passado". 
KING, Stephen. O Corpo. In Quatro Estações, p.411.

* * *


Quase sempre, é a praia.

Não havia (e continua não havendo, até onde sei) rodoviária por lá, portanto era preciso desembarcar numa cidade próxima e pegar um ônibus de linha. Sabendo que enfrentaria uma longa espera no ponto, passei antes num boteco para comprar o primeiro maço da minha vida (um Marlboro vermelho), mais uma caixinha de Fiat Lux — por algum motivo, achei que acender o cigarro com fósforo tinha um ar meio rústico que combinava com a minha mochila impermeável para trilhas. Disfarcei o acesso de tosse provocado pela primeira tragada e senti-me sombrio, amargo, adulto.

Àquela altura, plena tarde no fim de janeiro, ônibus e estrada estavam vazios, e o motorista fazia as curvas numa velocidade quase alarmante. Eu ia com a janela aberta, sentindo a maresia em lufadas quentes, vendo os relances da enseada às vezes se transformarem em mar aberto. Saltei a poucos metros da ponte de madeira, no caminho para a bica d'água, quase na esquina da casa de tijolos aparentes — à sua frente, o já familiar chão de barro parecia eternamente molhado, mesmo nos dias de sol escaldante. Descalcei tênis e meias e encolhi-me com o arrepio ao mesmo tempo repulsivo e reconfortante da massa de terra fria e úmida infiltrando-se entre os dedos dos pés.

Abri o portão de madeira, e talvez naquele momento o aparelho de som lá na sala estivesse mesmo tocando Belong, ou talvez seja só como eu me lembro da cena. O que importa é que tão logo vi a rede na varanda e senti a aspereza do piso de cimento da garagem em contraste com a maciez do barro, gritei com mais animação do que me seria habitual: "Ô de casa!".

Licença poética ou não, a justificativa de Stephen King para o tempo verbal da ficção está bem próxima da verdade, pelo menos para mim. A escrita me levou inúmeras vezes de volta àquele finzinho de férias na adolescência, em que a casa da praia e o Out Of Time, do R.E.M., me ajudaram a superar a primeira desilusão amorosa. Não que contar histórias seja necessa- riamente uma forma de terapia de regressão, mas boa parte da literatura é feita de protagonistas em momentos decisivos de suas vidas, e imagino que cada autor utilize as imagens que lhe são mais familiares na hora de criar personagens e situações. Sempre tive curiosidade de saber quais seriam as de King. Ele revela algumas em On Writing — como a vez em que, aos cinco ou seis anos de idade, perguntou se a mãe já tinha visto alguém morrer, e ela, além de não fugir do assunto, ainda encheu a resposta de pormenores macabros. Ou quando sua família se mudou para uma pequena cidade em Connecticut, e ele e o irmão descobriram, perto da nova casa, uma ampla área de matagal atravessada por uma velha estrada de ferro, vizinha a um ferro-velho e que mais tarde daria origem aos Barrens, quartel-general do Clube dos Perdedores em A Coisa [894 págs.; Objetiva, 2001].

Misto de livro de memórias e manual para o aspirante a escritor, On Writing não se preocupa tanto com detalhamento e cronologia em sua seção autobiográfica, apropriadamente intitulada C.V. (de "curriculum vitae"). Ainda que inclua também um ou outro episódio aleatório, como o hilário caso da babá e a traumática relação com os médicos, King se concentra naquilo que teve impacto em sua formação, como a ausência de um aparelho televisor em seu lar durante seus dez primeiros anos de vida, o que o levou a devorar quadrinhos, filmes B de ficção científica, terror e suspense — em especial, as versões de contos de Edgar Allan Poe dirigidas pelo papa do cinema trash, Roger Corman — e revistas com histórias dos mesmos gêneros. Aliás, foi para esse tipo de publicação que ele começou a enviar algumas de suas primeiras incursões literárias. Não há como não sorrir no trecho em que conta sobre a primeira de muitas cartas de rejeição que recebeu das editoras: ao som de I'm Ready, de Fats Domino, cheio daquela sadia petulância juvenil, o então garoto afixou-a como um troféu no quadro defronte à sua escrivaninha.

Em meio às recordações, King antecipa algumas dicas para os futuros romancistas e contistas, como a resposta à inevitável pergunta sobre inspiração. "Boas ideias para histórias parecem vir literalmente do nada, navegando pelo céu vazio até você: duas delas que antes não tinham relação entre si de repente se juntam e formam algo de novo sob o sol. Seu trabalho não é encontrar essas ideias, mas reconhecê-las quando aparecem", aponta, pinçando um exemplo de sua carreira. A experiência de trabalhar como faxineiro em uma high school durante um verão e conhecer o vestiário feminino, com suas latas de metal para descarte de absorventes e cortinas de plástico entre os chuveiros, voltou à sua cabeça anos mais tarde, quando viu um artigo sobre telecinese na revista Life. As duas ideias se juntaram, tornando-se o embrião de Carrie, A Estranha [140 págs.; Objetiva, 2007], romance protagonizado por uma adolescente que descobre ter poderes paranormais na mesma época em que tem sua primeira menstruação.

Em duas das seções seguintes do livro, Toolbox e On Writing, estão elencados os conselhos mais práticos. O escritor descreve a sua "caixa de ferramentas" (com vocabulário e gramática no topo e os elementos de estilo logo abaixo), aconselha a evitar a voz passiva ("é a voz dos garotinhos usando bigodes pintados com graxa de sapato") e declara que "o advérbio não é seu amigo". Também discorre sobre organização e construção de parágrafos e a importância da leitura e da disciplina. Tudo isso sem pedantismo algum, mas com muito bom humor e exemplos funcionais — por exemplo, as regras para edição (ou a arte de eliminar da história tudo o que não for história) são ilustradas com as alterações feitas na versão original do conto 1408, incluído na compilação Tudo É Eventual [306 págs.; Objetiva, 2005].

Fica evidente que a reflexão sobre o próprio ofício tem ocupado a mente de King desde antes de On Writing. Basta ver a extensa galeria de personagens escritores em sua bibliografia — há desde o bem-sucedido Paul Sheldon, de Angústia [346 págs.; Livraria Francisco Alves, 1991] até o alcoólatra Jack Torrance, de O Iluminado [264 págs.; Objetiva, 1999], passando pelo hesitante Bill Denbrough, de A Coisa. Poucos títulos, porém, reverenciam tanto o ato de contar histórias quanto Quatro Estações. O livro é formado por quatro novelas, cada uma relacionada a uma estação do ano, e três das quais foram transportadas para o cinema: Rita Hayworth E A Redenção De Shawshank virou Um Sonho De Liberdade [The Shawshank Redemption, 1994; dir.: Frank Darabont], Aluno Inteligente virou O Aprendiz [Apt Pupil, 1998; dir.: Bryan Singer] e O Corpo virou Conta Comigo [Stand By Me, 1986; dir.: Rob Reiner].

Esse último é provavelmente o que discute mais abertamente o tema. Afinal, o narrador, Gordon Lachance, é um escritor que relembra um episódio de sua juventude, quando ele e mais três amigos foram procurar o cadáver de um garoto desaparecido. O Corpo aborda, essencialmente, a dificuldade de se traduzir uma experiência em palavras (como no trecho do cervo), e retrata o momento único em que alguém se descobre autor: "Richie levantou as folhas... e devo admitir que não tentei muito tomá-las. Queria que as lesse e ao mesmo tempo não queria — uma mistura estranha de orgulho e vergonha, que sinto até hoje quando alguém me pede para ler o que escrevo. O ato de escrever em si é secreto, como a masturbação [...]. Quando acabou [de ler], Richie olhou para mim de uma maneira nova e diferente que fez com que eu me sentisse muito singular, como se tivesse sido forçado a reavaliar toda a minha personalidade".

A caminho do local onde está o corpo, diante da fogueira, Lachance narra uma de suas histórias, a da vingança de Lard Ass (Rabo Grande na tradução do livro, Bola de Sebo na dublagem em português do filme). Quando termina, Vern e Teddy, seus dois amigos menos "brilhantes", perguntam o que acontece depois. Difícil não associar essa passagem à adaptação cinematográfica de Rita Hayworth E A Redenção De Shawshank. Embora a narração em off de Morgan Freeman reproduza fielmente as últimas linhas da novela, o acréscimo de uma sequência conclusiva (a chegada de Red a Zihuatanejo e seu encontro com Andy) no filme simplesmente arruína o emocionante final aberto original. Talvez os autores de Um Sonho De Liberdade tenham suposto que o público é tão estúpido quando Vern e Teddy (e talvez tenham acertado). Igualmente infeliz é a tentativa do longa de amenizar o crime de Red com o claro intuito de torná-lo mais simpático (nas telonas, o prisioneiro veterano comete um latrocínio no calor do momento; nas páginas do livro, premedita friamente a morte da esposa para receber o dinheiro do seguro) — ao diminuir a culpa do personagem, o roteiro também enfraquece sua transformação.

Rita Hayworth... representa, de certo modo, o polo oposto ao de Aluno Inteligente. Ambas tratam, em última instância, do poder de uma história. Só que, enquanto a saga de Andy Dufresne inspira esperança, a do velho Kurt Dussander corrompe. O garoto Todd Bowen podia já ter algo sinistro dentro de si, mas conforme ele obriga o ex-oficial nazista a contar todas as barbaridades que conduziu nos campos de extermínio, o pior da natureza de ambos vem à tona — aqui, King parece lembrar aos críticos do gênero terror que a História, com maiúscula, é muito mais violenta, apavorante e influente do que qualquer fantasia sobre palhaços assassinos ou meninas telecinéticas.

Storytelling é também o foco da última novela, O Método Respiratório. O advogado David Adley é convidado por um colega a se juntar a um misterioso clube para cavalheiros em Manhathan, em que não há carteirinha, taxa de admissão ou mensalidade. Apesar de dispor de bar inesgotável, ampla biblioteca e outros passatempos, a principal atividade ali parece ser ficar em torno da lareira para ouvir as histórias contadas pelos outros. O sr. McCarron, um dos sócios mais idosos, se voluntaria para cuidar do entretenimento na véspera de Natal, a noite mais aguardada por todos, tradicionalmente reservada a uma história sobrenatural. Ele, então, conta algo que ocorreu quando trabalhava como médico, e acompanhou a gravidez de uma jovem solteira, a quem ensinou o tal método respiratório do título. Ao término da narrativa de McCarron, ainda abalado pelo que acabou de ouvir, David decide fazer algumas perguntas a Stevens, que é aparentemente o único funcionário do local, para tentar desvendar o segredo do clube.

Finda a leitura, dá para imaginar por que O Método Respiratório é a única "estação" que não virou filme. A história do médico tem um final chocante, e mostra o quanto King domina a técnica de criar suspense, mas ela só funciona em conjunto com a história do clube, uma vez que se baseia na expectativa do leitor pela chegada do elemento sobrenatural. A do clube, por sua vez, não possui uma trama propriamente dita, apenas o mistério, e sua resolução certamente frustraria os Verns e Teddys da vida. O clima da novela é semelhante ao de um episódio de Além Da Imaginação ou de um conto de Amazing Stories, duas séries que certamente estiveram entre as favoritas do autor.

Inscrito no arco de pedra sobre a lareira e enunciado pelos membros quando erguem um brinde, o lema do clube é também a epígrafe de Quatro Estações: "O importante é a história, não o narrador". Aplica-se, é claro, às quatro novelas, e parece também complementar o que King diz em On Writing, quando observa que um escritor pode ser formado, mas não feito.

Alguns anos atrás, voltei à praia. Não quis ir até a casa. Acho que no fundo também não importa tanto assim de onde as histórias vêm.

14 de março de 2013

As Vantagens De Ser Invisível

[The Perks Of Being A Wallflower]
Direção e roteiro: Stephen Chbosky
EUA, 2012

É estranho se dar conta de que algo que você costumava fazer quando jovem tornou-se, literalmente, coisa do século passado. A primeira fita cassete que eu gravei para alguém foi, evidentemente, para a primeira garota de quem gostei. Na época, começo dos anos 90, não pude contar com as valiosas dicas para montar repertório elaboradas por Rob Fleming, de Alta Fidelidade, romance que Nick Hornby publicaria lá pela metade da década. Mesmo assim, sem querer acabei seguindo uma delas, a de "começar com um sucesso, para prender a atenção". Escolhi Sombody To Love, e esse foi provavelmente o único título que a garota chegou a ler quando bateu os olhos na capinha (escrita à canetinha, em caligrafia caprichada), já que sua reação foi disparar: "Não suporto Queen, meu ex-namorado vivia escutando". Com um sorriso sem graça, voltei a guardar a fita no bolso, junto com os cacos do meu coração, repassando mentalmente os versos de abertura da coletânea que ela jamais ouviu: "Each morning I get up I die a little"...

Charlie, protagonista de As Vantagens De Ser Invisível, tem mais sorte: sua mixtape consegue impressionar a amiga — e objeto de interesse — Sam: "Nick Drake, The Shaggs... Você realmente tem bom gosto". Embora se passe naqueles últimos dias do mundo sem internet e seja repleto de elementos retrô, como cassetes, fanzines xerocados e montagens de The Rocky Horror Picture Show, não se trata de um filme saudosista. O diretor Stephen Chbosky, também responsável pelo roteiro que adapta o livro homônimo de sua autoria, coloca ênfase não nas coisas em si, mas no que elas significam. A máquina de escrever está lá não só porque é vintage — ela é a ferramenta do escritor por excelência, e simboliza a voz construída laboriosamente, letra por letra ("eu vou", tecla Charlie em determinado momento, com muito mais convicção do que conseguiria verbalizar). Do mesmo modo, o compacto em vinil de Something, dos Beatles, não é só um objeto cool — ao contrário das coletâneas que os personagens vivem trocando, ele representa uma declaração inequívoca, sem rodeios.

Conduzido com habilidade, o longa cativa pela trama tocante e simples (embora haja um desenvolvimento inesperado para os problemas psicológicos do protagonista), e mais ainda pelo trio principal. Logan Lerman [Percy Jackson E O Ladrão De Raios] emprega a dose certa de doçura, esquisitice e alguma comicidade para viver Charlie, calouro que entra para o high school e tem de enfrentar o dilema tipicamente juvenil de ser aceito e, ao mesmo tempo, encontrar a si próprio. Isolado, ele acaba se aproximando de Patrick, o carismático veterano gay que Ezra Miller [Precisamos Falar Sobre Kevin] interpreta com naturalidade, mesmo nos momentos mais afetados. Por tabela, conhece também Sam, meia-irmã de Patrick, por quem imediatamente fica encantado. É significativa a primeira aparição da personagem: radiante, Emma Watson [a Hermione da série Harry Potter] preenche a tela, emoldurada pelo halo criado por um dos holofotes do campo de futebol. A partir daí, a câmera, a exemplo do olhar do protagonista, sempre busca a garota.

A sensação de ser pária, cada qual à sua maneira, é o que primeiro une os três personagens — durante a festa que sela a entrada de Charlie para a turma, Sam lhe diz: "Bem-vindo à ilha dos brinquedos desajustados", numa referência à clássica animação em stop-motion Rudolph, A Rena Do Nariz Vermelho. O filme, porém, acerta ao não reduzir o drama da idade à busca por aprovação. Na sequência do baile, a caminhada desajeitada do protagonista pela pista de dança, ao som de Come On Eileen, do Dexys Midnight Runners, traduz visualmente um aspecto central da adolescência — a torrente de sentimentos que se sobrepõem, os problemas e questionamentos que desaparecem, ainda que temporariamente, numa fração de segundos.

A trilha sonora, aliás, tem papel de destaque. Charlie começa a desenvolver seu próprio gosto ao escutar Asleep em uma mixtape gravada pelo namorado loser da irmã, e consequentemente eleger os Smiths como sua banda preferida. Mais tarde, ele passa a pensar no amor enquanto ouve a seleção de baladas kitsch — incluindo All Out Of Love, do Air Supply — feita por Sam. E finalmente, resolve fazer sua própria coletânea, que entrega para a amiga fingindo casualidade. A música, portanto, é parte do processo de formação, ilustrado pela pilha de cassetes ao lado dos livros na estante do protagonista. E pode, também, ser agente catalizador de transformações, como quando Sam lembra da importância de Pearly-Dewdrops' Drops, do Cocteau Twins, em sua vida, ou, mais obviamente, no caso da "canção do túnel". Esse talvez seja o único momento em que Stephen Chbosky se mostra abertamente saudosista, ao celebrar o triunfo de descobrir, depois de muito tempo, o nome daquela música que você ouviu por acaso no rádio. Tal milagre da descoberta pode ter se tornado raro nesta época de informação imediata via web, mas não impossível, como o diretor mostra ao desenterrar a obscura Could It Be Another Change, do The Samples, para a abertura do filme (que não por acaso tem o túnel como cenário).

Não há nada de errado com a nostalgia por coisas do século passado. Afinal, como Charlie observa, "algum dia, tudo isso vai se tornar um punhado de histórias, e nossas imagens, velhas fotografias". Mas existe um instante mágico em que elas são mais do que meras histórias — e ainda bem que há gente sensível o suficiente para narrá-las.