22 de março de 2012

Apenas Uma Vez

[Once]
Direção e roteiro: John Carney
Irlanda, 2006

Once
Não é dos finais felizes que eu mais me lembro. Tudo bem, eles conseguem gerar satisfação imediata mas, ao mesmo tempo, são conclusivos — acabou, pronto. Os agridoces, por outro lado, ficam reverberando indefinidamente. O nó na garganta continua depois que os créditos passam pela tela, e daí se transforma em ruminação, tópico obsessivo de conversa. Talvez porque os elementos que geralmente compõem esse tipo de desfecho sejam tão familiares: o esforço sem resultados visíveis, o gosto de derrota mesmo quando se ganha, o mocinho que não fica com a mocinha... Finais agridoces geram identificação imediata.

Da primeira vez em que vi Glen Hansard e Markéta Irglová, simpatizei de cara — ela, tímida ao piano; ele, com seu violão esburacado. Os patinhos feios no meio da pompa da cerimônia do Oscar em 2008. Mas foi com a música que eles me conquistaram de vez. Ou melhor, meia música: bastou chegarem aos versos iniciais do refrão de Falling Slowly ("take this sinking boat and point it home / we've still got time") pra eu já ter meu candidato ao prêmio de Melhor Canção. Valeu a torcida — Glen e Markéta faturaram a estatueta com o tema principal de Once, que no Brasil acabou recebendo o título de Apenas Uma Vez.

Nem esperei o fim da cerimônia pra ir atrás do filme. E, mais uma vez, foi uma questão de segundos: logo na abertura, lá estava Glen com seu violão esburacado, numa calçada, cantando minha música favorita do Van Morrison, And The Healing Has Begun. Ele interpreta o Cara, que, quando não está consertando aspiradores de pó na oficina do pai, ganha uns trocados a mais como músico de rua. Durante o dia, toca covers, mas depois que o sol se põe e não tem ninguém prestando atenção, arrisca suas próprias composições. Numa dessas noites, conhece a Garota, interpretada por Markéta, que também trabalha na rua (vendendo ora revistas, ora flores) e pergunta pra quem ele escreveu aqueles versos (da canção Say It To Me Now) cheios de mágoa.

Dublin, onde os dois vivem, representa o ínterem no qual parecem estar presos: ele, tentando esquecer alguém que foi pra Londres; ela, à espera de alguém que ficou na República Tcheca. É justamente nesse "limbo" das ruas da capital irlandesa e das suas vidas que eles acabam se aproximando. Afinal, vagar por aí talvez seja a segunda melhor maneira de se conhecer melhor uma pessoa. A primeira, é claro, é a música. A Garota os conduz à loja de instrumentos onde o dono a deixa ficar praticando num dos pianos. Lá, o Cara a ensina a tocar Falling Slowly, e é evidente o sentimento que é simbolizado por aquele instante mágico em que eles se dão conta do quanto a canção fica melhor em dueto. Quando estão juntos, a cidade parece ampliar suas fronteiras — no passeio de moto, as ruas estreitas dão lugar a estradas, florestas, o mar. Quando estão juntos, conseguem convencer os outros (a banda, o gerente do banco, o técnico do estúdio) a gravar um punhado de canções.

FitzcarraldoA trilha sonora e a química entre os protagonistas, aliás, são os dois principais elementos que fazem o filme funcionar. O irlandês Glen, que já havia participado de outro musical no cinema antes, como o guitarrista do grupo soul em The Commitments [Alan Parker, 1991], é daqueles vocalistas que cantam com tudo: garganta, peito e vísceras. À frente do The Frames — banda formada em 1990 e da qual John Carney, o roteirista e diretor de Once, foi o primeiro baixista —, ele já alternava momentos explosivos, como em Revelate [do álbum Fitzcarraldo, de 96], com outros de introspecção, como em Lay Me Down, [For The Birds, 2001], às vezes ambos na mesma canção, como na versão ao vivo de Your Face [Set List, 2004].

Strict JoyFoi só quando montou outro projeto, The Swell Season, e deu início à parceria com Markéta que Glen realmente encontrou sua contraparte. Numa primeira impressão, a cantora e multi-instrumentista tcheca parece ter contribuído apenas com um pouco mais de doçura. Mas ela trouxe mais do que isso: a suavidade dos vocais e do piano de Markéta imprime uma tensão contida, num contraste que enriquece a voz áspera de Glen, como em This Low e The Moon, ambas do autointitulado disco de estreia do The Swell Season [2006], ou como em Lies e When Your Mind's Made Up, da trilha sonora de Once.

Até então, parecia uma fábula: o filme foi rodado em esquema totalmente independente, custou apenas US$ 30 mil, rendeu quase US$ 2 milhões e ainda por cima faturou um Oscar. A história ganhou mesmo ares de conto de fada quando, durante a turnê de promoção da película, Glen e Markéta iniciaram um romance na vida real. Só que, dessa vez, a torcida não adiantou — a relação não foi pra frente e os dois se separaram em 2009, pouco antes de lançarem Strict Joy, segundo álbum do The Swell Season. No ano seguinte, ainda vieram ao Brasil pra divulgar o trabalho, e tocaram no HSBC Brasil.

The Swell Season
O show foi cheio de momentos de arrepiar: quando Glen subiu sozinho ao palco e começou com uma performance realmente acústica (sem amplificação) de Say It To Me Now; quando a banca tocou as melhores faixas do disco novo: Low Rising, Feeling The Pull e I Have Loved You Wrong; quando eles mandaram duas do Van Morrison: Into The Mystic e Astral Weeks; e, claro, a cada canção da trilha de Once que apresentaram. A parte mais comovente, no entanto, foi mesmo Falling Slowly, que me fez voltar aquele nó na garganta.

De lá pra cá, Markéta estreou como solista com o álbum Anar [2011]. Glen está gravando o seu disco solo. E o The Swell Sweason acabou de lançar um autointitulado documentário que cobre os dois anos da tour promocional de Once, revela o cenário que levou o casal a se separar e soa como encerramento de um ciclo. Mas, quem sabe seja só uma pausa. Quem sabe a banda volte, renovada, e grave outros discos ainda mais inspirados. Quem sabe eles voltem...

Ei, eu nunca disse que não torço pelo final feliz.


6 de março de 2012

Ray Bradbury

ATUALIZAÇÃO: é com tristeza e algum assombro que vejo que este texto foi publicado exatos três meses antes da morte do autor.

[1920-2012]

Ray BradburyUma das minhas professoras de Português do segundo grau tinha uma máxima que ela repetia com voz rouca e solenidade quase cômica: “quem manda na língua é o falante”. Só que o bordão, em vez de funcionar como uma ferramenta pedagógica pra fixar aquela ideia, acabava virando alvo pros engraçadinhos de plantão, que imitavam a pobre mulher e faziam a atenção da sala se dispersar em meio a risos nem sempre contidos.

Mais tarde, descobri que a frase de efeito estava longe de ser invenção da professora. No estudo da língua, é possível observar um grande número de mudanças que acontecem na contramão das normas e da erudição. São muitos os casos em que a pronúncia acaba determinando a grafia de uma palavra, ou em que fatores sócio-culturais interferem na acepção de um termo.

"Alienu", por exemplo, que em latim significa "que é do outro", deu origem, em português, ao seu sinônimo "alheio". E está também na raiz de "alienígena", que quer dizer... "estrangeiro". Sim, porque a noção de que a palavra diz respeito a ETs ou a monstros cabeçudos que saem da barriga das pessoas vem por empréstimo da cultura popular, em especial a norte-americana. Aliás, "alien", em inglês, tem a mesma origem etimológica e significado que em português, podendo, ainda, se referir a espécies animais ou vegetais introduzidas em outro ambiente que não o seu.

Não é difícil imaginar, portanto, a analogia que trouxe a palavra a esse sentido de "extraterrestre" que ela tem hoje. Dos antigos gregos, que cunharam o nome pejorativo "bárbaro" pra se referirem a qualquer povo que não falasse seu idioma, às sempre conflituosas relações entre o Ocidente e o Islã, a humanidade sempre se cagou de medo e reagiu com agressiva desconfiança em relação a tudo que fosse diferente.

Os "estrangeiros" da ficção científica nada mais são do que um reflexo disso. A invasão alienígena de Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, por exemplo, espelhou o medo de um novo confronto mundial em 1938 (na famosa adaptação transmitida pelo rádio e narrada por Orson Welles), bem como a paranoia da Guerra Fria em 1953 (na primeira versão cinematográfica) e a ameaça terrorista em 2005 (na segunda versão, dirigida por Steven Spielberg).

As Crônicas MarcianasMuitas vezes, essas alegorias acabam nos passando despercebidas. É preciso que venha algum gênio nos dar um tapa na cara, como quando o físico Stephen Hawking comparou a hipotética vinda de extraterrestres ao nosso planeta com a chegada de Cristóvão Colombo à América (e o subsequente massacre das populações locais pelos conquistadores). Ou, antes disso, em 1950, quando o norte-americano Ray Bradbury publicou As Crônicas Marcianas [304 págs.; Globo, 2009].

As narrativas que compõem o livro foram escritas por Bradbury ao longo da década de 1940. Cada uma delas apresenta uma visão diferente a respeito da presença humana em Marte. Pro autor, são contos de fantasia, uma vez que, segundo ele, correspondem a uma "representação do irreal" e se opõem à ficção científica — esta, uma "representação do real".

Classificações à parte, a obra é mais do que uma mera compilação: é uma espécie de relato cronológico da fictícia colonização do planeta vermelho. Isto porque o escritor acrescentou capítulos breves que funcionam como interlúdios e que amarram um conto ao seguinte. Em conjunto, eles formam um diário que cobre o período que vai de janeiro de 1999 a outubro de 2026.

Embora Bradbury tenha sido bem-sucedido em seu esforço pra organizar essa crônica da conquista de Marte, o que mais impressiona no livro é justamente a diversidade de abordagens, além do modo como o autor brinca com as expectativas. Os clichês da telepatia e do mimetismo extraterrestres, por exemplo, são explorados com sensibilidade e criatividade em Ylla, A Terceira Expedição e O Marciano. A previsível comparação com a conquista do oeste norte-americano não demora a aparecer, mas é desenvolvida primorosamente em ...E a Lua Continua Brilhando.

Outros contos mais parecem exercícios de reflexão, ora filosófica ora mordaz, sobre a sanidade, como em Os Homens da Terra; sobre o tempo, como em Encontro Noturno; ou sobre o racismo, como em Flutuando no Espaço. Cabe até um tributo ao mestre do fantástico, Edgar Allan Poe, em Usher II — referência ao clássico A Queda da Casa de Usher, de Poe. Já a veia poética fica pro final, na belíssima conclusão O Piquenique de um Milhão de Anos.

Fahrenheit 451O escritor parece gostar de provocar questionamentos e de exigir de seu público mais do que uma simples leitura. Portanto, um filme baseado em As Crônicas Marcianas feito em Hollywood, que tem o péssimo hábito de eliminar qualquer caráter mais cerebral de uma obra em prol da ação, seria algo com que se preocupar. Pois há motivo pra apreensão: uma adaptação cinematográfica realmente está em andamento — e o pior, encabeçada, ironicamente, pelo produtor de Alien Vs. Predador. Resta rezar pra que essa versão pras telonas seja no mínimo tão decente quanto a que o francês François Truffaut fez em 1966 pra outro clássico de Bradbury: Fahrenheit 451 [256 págs.; Globo, 2005].

Na trama desse romance magistral (esse sim uma ficção científica, segundo o autor), somos apresentados a um mundo em que os livros são proibidos. Qualquer obra literária encontrada é logo queimada pelos bombeiros — o título, aliás, se refere à temperatura sob a qual o papel se incendeia. O protagonista, Guy Montag, é um desses homens do fogo; ele vive em crise com a esposa Mildred, cada vez mais mergulhada na ilusão alienante da tevê. As conversas que Montag tem com sua vizinha, a menina Clarisse, o levam a se render à irresistível atração que sente pelos objetos que deveria destruir.

A distopia criada por Bradbury assombra pelos paralelos que é possível traçar com certos aspectos da vida real. O cenário pintado no livro, por exemplo, não é resultado das imposições de um ditador tresloucado: ele é fruto da vontade da própria sociedade, que começa relegando a leitura ao segundo plano pra depois abandoná-la e recriminá-la de vez.

A edição de bolso da Globo de Fahrenheit 451 inclui um posfácio no qual o autor conta dois fatos interessantes. O primeiro é que ele costuma receber cartas de leitores incomodados, que pedem que ele reescreva As Crônicas Marcianas introduzindo mais personagens femininos ou reavaliando o modo como os negros são retratados, e coisas do tipo. O segundo é que uma editora cortou de um de seus contos expressões como “Deus-Luz” e “diante da sua Presença”, provavelmente por medo da reação da comunidade religiosa.

Bradbury então dispara: “Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos acesos. Cada minoria [...] acha que tem a vontade, o direito e o dever de esparramar o querosene e acender o pavio. Cada editor estúpido que se considera fonte de toda literatura insossa [...] lustra sua guilhotina e mira a nuca de qualquer autor que ouse falar mais alto que um sussurro ou escrever mais que uma rima de jardim de infância”.

A mensagem parece clara: em tempos de exagero do politicamente correto, de celebração da estupidez nos meios de comunicação, de imediatismo raso e banal dos 140 caracteres e das mídias sociais, todos nós somos os bombeiros que acabam com a arte e com a literatura. Somos as Mildreds hipnotizadas e apáticas em frente à tela o dia inteiro. Somos os astronautas que descartam culturas inteiras só porque são estranhas. Mas nós preferimos agir feito alienígenas, perplexos diante de uma realidade que não entendemos. Porque é mais fácil fingir que não entendemos. É mais fácil rir da piada do colega de classe e ignorar a lição.