6 de março de 2012

Ray Bradbury

ATUALIZAÇÃO: é com tristeza e algum assombro que vejo que este texto foi publicado exatos três meses antes da morte do autor.

[1920-2012]

Ray BradburyUma das minhas professoras de Português do segundo grau tinha uma máxima que ela repetia com voz rouca e solenidade quase cômica: “quem manda na língua é o falante”. Só que o bordão, em vez de funcionar como uma ferramenta pedagógica pra fixar aquela ideia, acabava virando alvo pros engraçadinhos de plantão, que imitavam a pobre mulher e faziam a atenção da sala se dispersar em meio a risos nem sempre contidos.

Mais tarde, descobri que a frase de efeito estava longe de ser invenção da professora. No estudo da língua, é possível observar um grande número de mudanças que acontecem na contramão das normas e da erudição. São muitos os casos em que a pronúncia acaba determinando a grafia de uma palavra, ou em que fatores sócio-culturais interferem na acepção de um termo.

"Alienu", por exemplo, que em latim significa "que é do outro", deu origem, em português, ao seu sinônimo "alheio". E está também na raiz de "alienígena", que quer dizer... "estrangeiro". Sim, porque a noção de que a palavra diz respeito a ETs ou a monstros cabeçudos que saem da barriga das pessoas vem por empréstimo da cultura popular, em especial a norte-americana. Aliás, "alien", em inglês, tem a mesma origem etimológica e significado que em português, podendo, ainda, se referir a espécies animais ou vegetais introduzidas em outro ambiente que não o seu.

Não é difícil imaginar, portanto, a analogia que trouxe a palavra a esse sentido de "extraterrestre" que ela tem hoje. Dos antigos gregos, que cunharam o nome pejorativo "bárbaro" pra se referirem a qualquer povo que não falasse seu idioma, às sempre conflituosas relações entre o Ocidente e o Islã, a humanidade sempre se cagou de medo e reagiu com agressiva desconfiança em relação a tudo que fosse diferente.

Os "estrangeiros" da ficção científica nada mais são do que um reflexo disso. A invasão alienígena de Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, por exemplo, espelhou o medo de um novo confronto mundial em 1938 (na famosa adaptação transmitida pelo rádio e narrada por Orson Welles), bem como a paranoia da Guerra Fria em 1953 (na primeira versão cinematográfica) e a ameaça terrorista em 2005 (na segunda versão, dirigida por Steven Spielberg).

As Crônicas MarcianasMuitas vezes, essas alegorias acabam nos passando despercebidas. É preciso que venha algum gênio nos dar um tapa na cara, como quando o físico Stephen Hawking comparou a hipotética vinda de extraterrestres ao nosso planeta com a chegada de Cristóvão Colombo à América (e o subsequente massacre das populações locais pelos conquistadores). Ou, antes disso, em 1950, quando o norte-americano Ray Bradbury publicou As Crônicas Marcianas [304 págs.; Globo, 2009].

As narrativas que compõem o livro foram escritas por Bradbury ao longo da década de 1940. Cada uma delas apresenta uma visão diferente a respeito da presença humana em Marte. Pro autor, são contos de fantasia, uma vez que, segundo ele, correspondem a uma "representação do irreal" e se opõem à ficção científica — esta, uma "representação do real".

Classificações à parte, a obra é mais do que uma mera compilação: é uma espécie de relato cronológico da fictícia colonização do planeta vermelho. Isto porque o escritor acrescentou capítulos breves que funcionam como interlúdios e que amarram um conto ao seguinte. Em conjunto, eles formam um diário que cobre o período que vai de janeiro de 1999 a outubro de 2026.

Embora Bradbury tenha sido bem-sucedido em seu esforço pra organizar essa crônica da conquista de Marte, o que mais impressiona no livro é justamente a diversidade de abordagens, além do modo como o autor brinca com as expectativas. Os clichês da telepatia e do mimetismo extraterrestres, por exemplo, são explorados com sensibilidade e criatividade em Ylla, A Terceira Expedição e O Marciano. A previsível comparação com a conquista do oeste norte-americano não demora a aparecer, mas é desenvolvida primorosamente em ...E a Lua Continua Brilhando.

Outros contos mais parecem exercícios de reflexão, ora filosófica ora mordaz, sobre a sanidade, como em Os Homens da Terra; sobre o tempo, como em Encontro Noturno; ou sobre o racismo, como em Flutuando no Espaço. Cabe até um tributo ao mestre do fantástico, Edgar Allan Poe, em Usher II — referência ao clássico A Queda da Casa de Usher, de Poe. Já a veia poética fica pro final, na belíssima conclusão O Piquenique de um Milhão de Anos.

Fahrenheit 451O escritor parece gostar de provocar questionamentos e de exigir de seu público mais do que uma simples leitura. Portanto, um filme baseado em As Crônicas Marcianas feito em Hollywood, que tem o péssimo hábito de eliminar qualquer caráter mais cerebral de uma obra em prol da ação, seria algo com que se preocupar. Pois há motivo pra apreensão: uma adaptação cinematográfica realmente está em andamento — e o pior, encabeçada, ironicamente, pelo produtor de Alien Vs. Predador. Resta rezar pra que essa versão pras telonas seja no mínimo tão decente quanto a que o francês François Truffaut fez em 1966 pra outro clássico de Bradbury: Fahrenheit 451 [256 págs.; Globo, 2005].

Na trama desse romance magistral (esse sim uma ficção científica, segundo o autor), somos apresentados a um mundo em que os livros são proibidos. Qualquer obra literária encontrada é logo queimada pelos bombeiros — o título, aliás, se refere à temperatura sob a qual o papel se incendeia. O protagonista, Guy Montag, é um desses homens do fogo; ele vive em crise com a esposa Mildred, cada vez mais mergulhada na ilusão alienante da tevê. As conversas que Montag tem com sua vizinha, a menina Clarisse, o levam a se render à irresistível atração que sente pelos objetos que deveria destruir.

A distopia criada por Bradbury assombra pelos paralelos que é possível traçar com certos aspectos da vida real. O cenário pintado no livro, por exemplo, não é resultado das imposições de um ditador tresloucado: ele é fruto da vontade da própria sociedade, que começa relegando a leitura ao segundo plano pra depois abandoná-la e recriminá-la de vez.

A edição de bolso da Globo de Fahrenheit 451 inclui um posfácio no qual o autor conta dois fatos interessantes. O primeiro é que ele costuma receber cartas de leitores incomodados, que pedem que ele reescreva As Crônicas Marcianas introduzindo mais personagens femininos ou reavaliando o modo como os negros são retratados, e coisas do tipo. O segundo é que uma editora cortou de um de seus contos expressões como “Deus-Luz” e “diante da sua Presença”, provavelmente por medo da reação da comunidade religiosa.

Bradbury então dispara: “Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos acesos. Cada minoria [...] acha que tem a vontade, o direito e o dever de esparramar o querosene e acender o pavio. Cada editor estúpido que se considera fonte de toda literatura insossa [...] lustra sua guilhotina e mira a nuca de qualquer autor que ouse falar mais alto que um sussurro ou escrever mais que uma rima de jardim de infância”.

A mensagem parece clara: em tempos de exagero do politicamente correto, de celebração da estupidez nos meios de comunicação, de imediatismo raso e banal dos 140 caracteres e das mídias sociais, todos nós somos os bombeiros que acabam com a arte e com a literatura. Somos as Mildreds hipnotizadas e apáticas em frente à tela o dia inteiro. Somos os astronautas que descartam culturas inteiras só porque são estranhas. Mas nós preferimos agir feito alienígenas, perplexos diante de uma realidade que não entendemos. Porque é mais fácil fingir que não entendemos. É mais fácil rir da piada do colega de classe e ignorar a lição.

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