22 de dezembro de 2012

I Know What Love Isn't

Artista: Jens Lekman
Service/Secretely Canadian, 2012

É provável que já tenha acontecido com você: um dia, seus amigos decidem que a sua fase de reclusão, motivada por um traumático fim de relacionamento, durou o suficiente e que é hora de você sair da toca e conhecer gente. Ou ao menos ver gente. De algum modo, eles o convencem a ir a uma festa, e a princípio parece até uma boa ideia. Mas logo fica evidente o seu descompasso com a humanidade — você odeia e ao mesmo tempo inveja todas aquelas pessoas descontraídas fazendo a sua miséria parecer inadequada. A sensação é a de estar gripado em pleno verão. A única saída, portanto, é alegar dor de cabeça, voltar para casa e enfrentar o resto da noite sozinho com, digamos, uma garrafa de bourbon e uma pilha de discos de fossa.

"Uma pilha" não é exagero. A seleção de músicas para ouvir no fundo do poço é interminável. Afinal, há desde os álbuns que soam dolorosos por razões pessoais — como, por exemplo, o que marcou as férias de fim de ano em que vocês se conheceram, ou o da cantora de quem vocês viram o show juntos — até aqueles que são fruto de uma crise parecida com a sua, ou seja, foram produzidos por artistas na pior. Dentro desse segundo grupo, alguns acabaram se tornando clássicos, como In The Wee Small Hours [1955], que Frank Sinatra lançou na esteira de seu divórcio da atriz Ava Gardner, e Blood On The Tracks [1975], no qual Bob Dylan escreveu letras deprê sobre perda e separação, refletindo o período de turbulência vivido então em seu casamento, que acabaria pouco tempo depois.

E o "gênero" continua rendendo. Dentre os exemplos mais recentes, há o comovente The First Days Of Spring [2009], da banda indie Noah And The Whale, praticamente uma crônica sobre o fim da parceria romântica e artística entre o vocalista Charlie Fink e a também cantora Laura Marling, narrado sob o ponto de vista dele; e a breve discografia do duo de alt-country The Everybodyfields, que acompanha a trajetória do casal Sam Quinn e Jill Andrews — eles ainda estavam juntos quando gravaram o álbum de estreia, Halfway There: Electricity & The South [2004]; terminaram a relação, mas decidiram continuar com a banda, projetando toda sua desilusão nas letras do segundo disco, Plague Of Dreams [2005]; a estratégia não deu certo, e as constantes brigas entre os dois chegaram a interromper as gravações do seguinte, o maravilhoso Nothing Is Okay [2007], este sim um álbum escancaradamente confessional, amargo e, infelizmente, o último deles como dupla.

Não se trata, necessariamente, de identificação literal. Para se emocionar com a canção, você não precisa ter vivido exatamente a mesma situação, por exemplo, que Charlie Fink descreve em versos como "na noite passada, dormi com uma estranha pela primeira vez desde que você se foi". A questão é empatia — você ouve uma combinação de letra, melodia e arranjo e pensa que aquele sujeito cantando sabe bem o que você está sentindo, e o entende melhor do que os seus amigos. Bons compositores de música de fossa conseguem transformar o absolutamente particular em universal.

O sueco Jens Lekman domina como poucos essa arte. Ele é capaz de usar um acidente doméstico envolvendo uma faca e um abacate (?!) para compôr uma balada apaixonada — a adorável Your Arms Around Me, do álbum Night Falls Over Kortedala [2007] — ou de criar uma pérola pop — Waiting For Kirsten, do EP An Argument With Myself [2011] — narrando uma tentativa de encontrar Kirsten Dunst em Gothenburg, na ocasião em que a atriz esteve na Suécia para filmar o longa Melancholia, de Lars Von Trier. Ao valer-se desses episódios tão específicos, Jens faz mais do que simplesmente soar autobiográfico — as cenas peculiares pintadas por ele são como instantâneos que ilustram um sentimento comum, uma experiência que qualquer um pode ter vivenciado. Por exemplo: mesmo morando em uma cidade em que não há bondes, é fácil se pegar suspirando de solidão e nostalgia ao escutar a linda Tram #7 To Heaven, do disco When I Said I Wanted To Be Your Dog [2004]. E, como se isso não bastasse, vez ou outra ele ainda dispara um verso matador — não dá para deixar de sorrir ao ouvi-lo cantando "sim, eu fui preso, e usei o meu único telefonema pra dedicar uma canção pra você na rádio" em You Are The Light (By Which I Travel Into This And That), de Night Falls Over Kortedala.

Com essa personalidade romântica e meio boba (tá legal, isso foi uma redundância) que ele deixa transparecer nas composições, não é de se espantar que Jens tenha produzido um disco de fossa tão... estranho. E ao mesmo tempo, tão bonito. I Know What Love Isn't é um album "inteirinho sobre corações partidos", nas palavras do autor, produto da "pior separação" que ele já viveu. Ainda assim, há poucos momentos de melancolia explícita, talvez em três ou quatro faixas, no máximo. Entre elas, I Want A Pair Of Cowboy Boots, na qual confessa que "você estava no meu sonho na noite passada, assim como em todas as outras noites nos últimos dois anos"; mais tarde, no refrão, ele conclui que "no meu próximo sonho, quero um par de botas de cowboy, do tipo que caminha pelas mais retas e mais estreitas rotas — qualquer lugar que não seja de volta pra você".

A razão para a aparente escassez de tristeza é explicada pelo próprio Jens em uma entrevista: "a música pode fazê-lo se sentir melhor, desde que você tenha alguma perspectiva sobre as coisas; mas quando eu estava bem no meio do furacão, eu só conseguia encontrar conforto nas atividades físicas. Então, eu comecei a fazer flexões, o que foi algo completamente novo pra mim, e eu amei como isso me deixava exausto e liberava um bocado daquelas doces substâncias químicas no corpo, levando embora boa parte da preocupação e da dor. A música só veio bem depois". A "terapia" é descrita em versos na faixa Every Little Hair Knows Your Name: "eu comecei a malhar quando nós terminamos. Eu consigo fazer cem flexões, provavelmente conseguiria duzentas se estivesse entediado. Eu escrevi algumas canções quando nós terminamos. Mas não veio nada, então eu parei".

O resultado é que I Know What Love Isn't é um disco sem tantas lamúrias, como se fosse um filme ou um romance que tirasse o foco do drama em si e o concentrasse em como o protagonista tenta se livrar do fardo. No caso de Jens, pode ser de muitas maneiras: desde propor casamento à melhor amiga só para obter uma cidadania estrangeira — como ele narra na faixa-título — até retribuir a gentileza da amiga Tracey Thorn, ex-vocalista do Everything But The Girl, que em sua música Oh, The Divorces, do disco solo Love And Its Opposite [2010], havia escrito: "oh, Jens, oh, Jens, suas canções parecem olhar através de lentes diferentes; você ainda é tão jovem, o amor acaba tão facilmente quanto começa". Em Become Someone Else's, Jens responde: "o que Tracey escreveu a meu respeito é verdade — tudo depende das lentes através das quais você olha. Mas tudo o que sei sobre o amor, eu aprendi com você, Tracey".

Quem sabe a parte mais fácil no fim de um relacionamento seja justamente ficar na fossa, bebendo sozinho e se lamentando ao som de canções tristes. Mais difícil é tocar a vida, conciliando os inevitáveis momentos de depressão com as obrigações profissionais e sociais. Mas, eventualmente, um dia você acaba se dando conta de que o mundo, afinal, segue em frente. Pode ser que essa percepção venha de modo inesperado, como Jens descreve em The World Moves On: em meio à mais intensa onda de calor já vivida nos últimos anos na Austrália (onde ele morou durante algum tempo), deitado no chão, com um pacote de ervilhas congeladas na testa, e de repente, a revelação: "você não supera um coração partido, apenas aprende a carregá-lo graciosamente".

Se isso for muito "verão" pra você, talvez seja reconfortante lembrar que na Suécia faz frio o tempo todo.

5 de outubro de 2012

Pela Bandeira Do Paraíso

[Under The Banner Of Heaven]
Autor: Jon Krakauer
384 págs.
Companhia das Letras, 2003


Parecia um sujeito normal. Bem-sucedido profissionalmente e respeitado pela comunidade, era um marido e pai dedicado, apesar da recente crise familiar — anos antes, tivera um filho fora do casamento e passara a abrigá-lo (e à amante) em seu lar; no entanto, depois que seu herdeiro legítimo nasceu, a esposa pediu-lhe que mandasse o bastardo (e a amante) embora, e ele acabou atendendo. Alguns poderiam até reprovar tal atitude, mas ninguém a consideraria indício de insanidade. A única coisa realmente bizarra em seu comportamento era o fato de ele acreditar em um deus com o qual mantinha uma relação bastante pessoal. A divindade não apenas conversava com ele, como também o visitava, dava conselhos e prometia recompensas — faria dele, por exemplo, o líder de seu povo, caso aceitasse realizar algumas tarefas, como matar o próprio filho. Sem pestanejar, ele aceitou.

Profetas são figuras complexas, contraditórias e, por isso mesmo, fascinantes. Eles são capazes de compreender aspectos da espiritualidade que fugiriam à percepção de teólogos e filósofos qualificados, mas ao mesmo tempo apresentam claros sintomas de transtorno mental — afinal, eles ouvem vozes e vêem coisas. São abnegados que dedicam suas vidas a cumprir suas missões e, assim, garantir a salvação dos outros, mas são também narcisistas — eles é que são os eleitos, suas palavras é que são as verdadeiras, é do lado deles que os deuses estão. E, acima de tudo, são homens de fé, no sentido de que nada consegue abalar suas convicções — com todas as consequências positivas e negativas que isso possa trazer. No fim das contas, o que diferencia um profeta iluminado de um lunático é se você acredita nele ou não. A propósito, o sujeito do parágrafo anterior chamava-se Abrão, mais tarde conhecido como Abraão, patriarca bíblico dos israelitas. E aquele deus meio sádico era, portanto, o mesmo que depois se tornaria o Deus do Judaísmo, do Cristianismo e do Islamismo.

Era, também, o mesmo que falava com Ron Lafferty — aqui, a comunicação entre divindade e discípulo se dava por meio das chamadas "revelações", que Ron havia aprendido a receber e interpretar na Escola de Profetas que vinha frequentando, e que consistiam em textos escritos de próprio punho ou no computador, supostamente inspirados pelo Todo-Poderoso. Uma dessas revelações enumerava quatro pessoas que deveriam ser "removidas" para que a "obra do Senhor" pudesse seguir adiante. Ron mostrou-a ao irmão, Dan; juntos, concluíram que eram instruções verdadeiramente divinas e deveriam ser cumpridas. Começariam pelos dois primeiros nomes da lista, Brenda e Erica — respectivamente, a esposa do irmão mais novo deles, Allen, e a filha do casal, de apenas quinze meses de idade. Assim, em uma tarde de julho de 1984, Ron e Dan bateram à porta da cunhada, tão decididos quanto Abrão estava no momento em que ergueu o punhal contra o próprio rebento, Isaac. Só que, ao contrário do que aconteceu com o personagem do Gênesis, nenhum anjo apareceu no último momento para impedir o ritual e dizer que tinha sido apenas um teste de fé. Naquela noite, quando Allen chegou em casa, na cidade de Provo, Utah, encontrou a esposa e a bebê cobertas de sangue, ambas com a garganta cortada.

Como outros crimes dessa natureza, os assassinatos de Brenda e Erica foram obra de indivíduos perturbados com uma visão distorcida de sua crença. Mas o caso acaba se destacando por envolver uma religião que figura entre as que mais têm crescido nos Estados Unidos nos últimos tempos, segundo pesquisa publicada no início deste ano, e que tem entre seus membros ilustres o atual candidato republicano à Casa Branca, Mitt Romney — e que, mesmo assim, continua sendo um mistério para a maioria das pessoas, provavelmente familiarizadas apenas com o lado mais extravagante de sua doutrina, como o uso das "roupas de baixo sagradas" e a controversa prática da poligamia. Trata-se da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, também conhecida como Igreja LDS (sigla de seu nome em inglês, Latter-Day Saints) ou Mórmon.

Autor de livros-reportagem como Na Natureza Selvagem e No Ar Rarefeito, Jon Krakauer cresceu em uma cidade com expressiva comunidade de Santos dos Últimos Dias, tanto que muitos de seus amigos de infância pertenciam à LDS. Fascinado por aquele credo, o jornalista pretendia escrever um livro sobre "como uma mente crítica consegue reconciliar a verdade científica e histórica com a doutrina religiosa", numa abordagem sob a lente do Mormonismo. Tendo acontecido há menos de dois séculos, a criação da Igreja foi, como ele observa, "abundantemente documentada em relatos de primeira mão. Graças aos mórmons, tivemos uma oportunidade única de apreciar — com detalhes surpreendentes — como nasce uma importante religião". Durante a pesquisa, entretanto, sua atenção foi sendo irresistivelmente atraída para o crime dos irmãos Lafferty. O resultado é Pela Bandeira Do Paraíso, que procura dissecar o caso por meio de entrevistas com vários envolvidos, inclusive um dos assassinos, Dan, que cumpre prisão perpétua (seu irmão Ron, condenado à pena capital, aguarda até hoje o resultado de suas apelações no corredor da morte), além de depoimentos extraídos de transcrições das audiências e julgamentos.

A religião é, obviamente, um dos pontos centrais no relato. Ron e Dan eram mórmons dissidentes, embora não afiliados à FLDS (Fundamentalist Latter-Day Saints), principal ramo fundamentalista da Igreja. Para tentar entender o credo particular dos Lafferty e as diferenças entre LDS e FLDS, Krakauer recorre a eventos e personagens-chave na história do Mormonismo — a começar por Joseph Smith Jr., que fundou o movimento na década de 1820. Smith vivenciou um período de histeria apocalíptica (sob o impacto da recessão econômica na qual os Estados Unidos haviam mergulhado após a Guerra da Independência), em que muitos católicos e protestantes se sentiam insatisfeitos com a postura distante de suas igrejas, e buscavam conforto tanto em uma relação mais pessoal com seu Deus quanto em crenças voltadas ao misticismo. Influenciado pelo espírito da época, o futuro profeta, em sua adolescência, começou a oferecer um serviço de localização de objetos valiosos perdidos, que ele dizia ser capaz de achar utilizando uma "pedra mágica". A carreira foi interrompida quando ele foi acusado de charlatanismo, mas ainda havia mais um tesouro a ser encontrado.

Poucos anos mais tarde, Smith foi visitado por um anjo chamado Moroni, que revelou a existência de placas de ouro enterradas numa colina. Nelas, inscrita em caracteres egípcios, estava a história de uma tribo hebraica liderada por Lehi, que, cerca de 600 anos antes do nascimento de Jesus, saiu de Jerusalém e veio colonizar a América. Quando ficou velho, Lehi decidiu passar o comando para seu filho Nephi, o que enfureceu o outro filho, Laman. A tribo, então, ficou dividida em dois clãs: os virtuosos nefitas e os corrompidos lamanitas, que, por sua maldade, foram punidos por Deus e tiveram suas peles escurecidas. Na disputa pelo poder que se sucedeu, os lamanitas dizimaram os nefitas, o que explicaria porque os índios americanos têm a pele escura — seriam todos descendentes dos seguidores de Laman. Traduzida por Smith, essa narrativa foi batizada de Livro De Mórmon (Mórmon foi o líder dos nefitas na batalha final contra os lamanitas) e se tornou, juntamente com outro livro do profeta, chamado Doutrinas E Mandamentos, a base da Igreja dos Santos dos Últimos Dias.

Carismático, Smith logo conquistou adeptos, atraídos não somente por aquela história, mas também pelo fato de a nova religião ser legitimamente americana e incentivar uma comunicação direta dos fiéis com Deus — segundo o profeta, qualquer um era capaz de receber uma revelação divina. Com o tempo, entretanto, o líder se deu conta de que as suas instruções logo poderiam começar a ser contrariadas pelas revelações de algum seguidor. Smith, então, mudou o discurso, dizendo que Deus havia decretado que, a partir dali, apenas ele, o profeta, estava autorizado a receber os mandamentos divinos. É claro que nem todos aceitaram isso, e foi então que as primeiras seitas separatistas surgiram. Outro momento de ruptura foi quando Smith anunciou a revelação hoje conhecida como "artigo 132" e na qual o Senhor autorizava os homens a tomarem quantas esposas desejassem. A notícia chocou muitas pessoas dentro e fora da comunidade, e a suposta imoralidade daquela doutrina só fez intensificar a perseguição que os Santos já vinham sofrendo. A escalada de violência culminou com o assassinato de Smith, em 1844. Cerca de 40 anos mais tarde, um dos sucessores do profeta no comando da Igreja Mórmon finalmente cedeu às pressões externas e revogou o artigo 132, proibindo a já disseminada prática da poligamia.

Fundamentalistas, qualquer que seja o credo, lutam pela volta de suas religiões ao que eles acreditam ser seu estado mais puro. Os membros da FLDS, por exemplo, têm como principal crítica à LDS o fato de ela ter abandonado o casamento plural, que, afinal, foi ordenando pelo próprio Deus por meio de Joseph Smith Jr. Ron e Dan Lafferty defendiam não só esse como outros mandamentos descartados pelos mórmons da linha central, como a liberdade de qualquer fiel receber revelações divinas. E também um especialmente polêmico, pregado por Smith e por Brigham Young (sucessor imediato do fundador após sua morte e um dos principais responsáveis pela expansão do Mormonismo): a expiação pelo sangue, que dizia que algumas transgressões só podem ser redimidas se "o sangue dos pecadores for derramado no chão", nas palavras de Young.

Para quem não compartilha da fé, o primeiro impulso é qualificar todos — Smith, Young, os Lafferty e os Santos em geral — como lunáticos, já que a história narrada no Livro De Mórmon soa ridiculamente fantasiosa. Nesse sentido, a principal virtude de Pela Bandeira Do Paraíso é não permitir que a visão crítica seja contaminada pelo preconceito. Ao comentar a falta de evidências arqueológicas comprovando a existência de uma civilização como a dos nefitas na América ou de uma ligação genética entre os índios americanos e os hebreus, Krakauer lucidamente observa: "Todas as crenças religiosas derivam da fé não racional. E a fé, por definição, tende a ser imune à argumentação intelectual ou à crítica acadêmica. [...] Os que atacam o Livro De Mórmon devem ter em mente que sua veracidade é tão duvidosa quanto a da Bíblia, ou a do Corão, ou a das escrituras sagradas da maioria das demais religiões. Esses últimos textos simplesmente têm a considerável vantagem de haverem aparecido publicamente nos recessos sombrios do passado remoto, sendo por isso muito mais difíceis de refutar".

Ninguém nega que Ron tenha problemas, mas ele realmente acreditava que a sua revelação era divina, ainda que os quatro nomes na lista de remoção fossem coincidentemente os das mesmas pessoas que ele considerava culpadas por sua esposa tê-lo abandonado. Da mesma forma, Joseph Smith Jr. realmente acreditava que a poligamia era um mandamento de Deus, ainda que estivesse oportunamente em consonância com os seus apetites (o profeta teve mais de 40 esposas). É preciso admitir que distorcer uma crença para que ela se adeque aos seus próprios interesses não é um ato praticado somente na religião dos outros. A Bíblia na qual católicos e protestantes depositam sua fé, por exemplo, é uma compilação de textos selecionados e editados com o firme propósito de transmitir a mensagem que o ramo predominante na Igreja de então acreditava ser a mais adequada — e que, ao longo da história, serviu como justificativa para atrocidades como as Cruzadas e a Inquisição.

Logo nas primeiras linhas do Livro De Mórmon, Smith adverte que, se o texto tiver alguma falha, serão "erros dos homens". E é esse o ponto: os homens erram; só que quando eles acreditam com convicção em algo, eles deixam de se questionar.

17 de julho de 2012

Shame

[Idem]
Direção: Steve McQueen
Roteiro: Abi Morgan e Steve McQueen
Reino Unido, 2011


Existe uma carga de sofrimento físico e emocional na cena que Haruki Murakami narra em Norwegian Wood: "Eu a beijei e envolvi seus seios macios com as mãos. Ela segurou meu pênis já duro. Sua fenda estava morna e molhada e me chamava. Apesar disso, quando a penetrei, ela se retesou de dor. [...] No final, Naoko me agarrou com mais força, gritando. De todos os gritos que escutei durante orgasmos, o seu foi o mais triste".

Já Pedro Juan Gutiérrez escancara a putaria em sua Trilogia Suja de Havana: "Veio abrir a porta de calcinha e sutiã, meio molhada, e quase nem falamos. Foi uma boa foda. [...] Gosto dessa mulher. Vira de costas para que eu coma sua bunda. Já tinha me falado que com seu marido — ela tinha casado três anos antes — não conseguia. O negro tinha uma pica de negro e isto impedia algumas acrobacias".

José Saramago, por sua vez, transforma volúpia em mistério no Evangelho Segundo Jesus Cristo: "E ele aí o tinha, o seu corpo, tenso, duro, erecto, e sobre ele estava, nua e magnífica, Maria de Magdala, [...] então sentiu que uma parte de seu corpo, essa, se sumira no corpo dela, que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um estremecimento o sacudia por dentro, como um peixe agitando-se, e que de súbito se escapava gritando, impossível, os peixes não gritam, ele, sim, era ele quem gritava".

Sexo nunca é só sexo. Todo ato é movido, ainda que não declaradamente, por algo mais, seja sentimento ou necessidade. É assim na vida real e, em especial, na ficção, como exemplificam os três escritores citados acima. Murakami usa-o como elemento complicador na já atribulada relação entre Toru, o protagonista e narrador, e Naoko, a namorada de seu melhor amigo, que havia se suicidado — quando transam, ele descobre que ela ainda é virgem e, portanto, está violando ao mesmo tempo a memória do amigo e o corpo da garota. Gutiérrez o reduz a instinto e, com isso, paradoxalmente amplia seu escopo — uma vez que a promiscuidade do protagonista é um alívio para suportar a falta de perspectivas e uma forma de sobressair perante outros machos, simboliza também a busca inconsciente e primitiva por continuidade, sobrevivência. Saramago saca-o de seu arsenal de sacrilégios — ao despojar Jesus de sua castidade, Maria de Magdala está fazendo mais do que humanizá-lo; está mostrando que é a carne, não a herança divina, que eleva o Cristo.

Tão importante quanto o quê dizer é como dizer. Escolher "orgasmo" em vez de "gozo", ou "pica" em vez de "pênis", não é mera questão de estilo. O tom formal e às vezes caloroso de Murakami é adequado ao narrador que quer manter algum distanciamento do passado para tentar analisá-lo, sem conseguir, contudo, deixar de sucumbir ao sentimentalismo aqui e ali. A vulgaridade de Gutiérrez faz com que as peripécias sexuais de seu personagem soem apropriadamente como bravatas, assim como a profusão de cheiros e secreções reforça o quanto elas beiram o animalesco. E não é à toa que Saramago recorre a imagens pinçadas do repertório bíblico, como fogo e peixes "milagrosos", para confundir sagrado e mundano e pintar o sexo como experiência reveladora.

Nem "orgasmo" nem "gozo"; em Shame, a escolha do cineasta Steve McQueen está mais para "la petite mort": sofisticada e com diferentes possibilidades de leitura. Para começar, há a ligação entre sexo e morte na qual a metáfora francesa se baseia. Eros e Thanatos são, segundo os freudianos, as pulsões de vida (com sua propagação por meio do sexo) e de morte (com todas as formas de autodestruição aí incluídas) que impelem o nosso comportamento. E elas estão sempre presentes no filme, como na clara oposição entre Brandon [Michael Fassbender, mais uma vez excepcional], o executivo bem-sucedido que sofre de hipersexualidade, e sua irmã Sissy [Carey Mulligan], a cantora com tendências suicidas. Estão, também, na sequência inicial no metrô, em que Brandon olha, pensativo, para um velho adormecido no vagão e então desvia o olhar para o outro lado, onde uma desconhecida sorri e flerta com ele. Mas, assim como acontece com a psiquê humana, as coisas não são tão simples quanto aparentam.


O tempo todo, McQueen tenta mexer com a percepção do espectador. Ao mostrar sem pudores Brandon urinando ou em cenas de nu frontal, o diretor parece perguntar: por que ver um homem no banheiro deveria causar maior estranheza do que vê-lo transando? Por que a nudez dele deveria parecer mais gratuita do que a de Sissy? Ela, inclusive, está nua logo em sua primeira aparição — assim, de repente, sem preliminares. Em seguida, surge em uma camiseta transparente. Mas a personagem só se "despe" de verdade quando está vestida e interpreta uma emocionante versão de Theme From New York, New York, numa longa sequência em que pouco mais do que seu rosto ocupa a tela. Uma espécie de sedução às avessas.

Planos demorados e quase estáticos, aliás, são recorrentes no trabalho de McQueen. Em seu filme anterior, Hunger [2008], uma extensa tomada com o mesmo enquadramento servia para ilustrar as firmes posições ideológicas de cada um no duelo verbal entre o manifestante do I.R.A. Bobby Sands [Fassbender] e o padre Dom [Liam Cunningham]. Em Shame, o artifício tem outros objetivos. Numa das únicas cenas de sexo das quais Brandon não participa, ele sai para uma sessão noturna de jogging, enquanto a câmera o segue pelas ruas de Nova York durante tediosos minutos — só resta imaginar que a mente do personagem, assim como a de quem assiste, não deixou o apartamento nem por um segundo. Em outra tomada sem cortes, o personagem tem um encontro com uma mulher e, ao longo do jantar, conforme os dois driblam o constrangimento inicial (e as interrupções do garçom inconveniente), o quadro vai se fechando, de modo lento e sutil, no casal. Tão importante quanto o quê dizer é como dizer...

E o "o quê", afinal, não se resume ao sexo — que, para o protagonista, é mais do que satisfação física. É um exercício de poder, como na noitada com o chefe ou, mais tarde, no bar no qual uns valentões jogam sinuca. É uma forma de manter-se no comando em um jogo em que ele mesmo estipula as regras, como na transa com a "amiga" chamada para consolá-lo após uma frustração. É um ritual, como na masturbação diária ou na sequência inicial, em que a trilha sonora (o metrônomo soa como o tique-taque de um relógio) e a repetição das mesmas cenas (as cortinas sendo abertas, a caminhada do quarto para a cozinha, a secretária eletrônica, o som da torneira) sugerem uma rotina mecânica. É sexo, mas poderia ser bebida, trabalho, coleção de selos ou qualquer outro vício escapista que criasse a ilusão de sentido no caos. Ilusão esta que se desfaz com a chegada de Sissy.

Embora à primeira vista representem posições antagônicas — ele, o controle; ela, a inconsequência —, os irmãos são mais semelhantes do que conseguem perceber. Sissy busca atenção do mesmo jeito que Brandon busca aqueles instantes de excitação. São ambos fugitivos de um passado possivelmente traumático. "Não somos pessoas ruins. Apenas viemos de um lugar ruim", diz Sissy. Porém, mais uma vez evitando o lugar-comum, McQueen recusa-se a dar maiores explicações e mostra apenas um recorte da história. Ao não oferecer uma conclusão para o filme, o diretor priva o público do orgasmo. A finalidade aqui não é o prazer.

22 de março de 2012

Apenas Uma Vez

[Once]
Direção e roteiro: John Carney
Irlanda, 2006

Once
Não é dos finais felizes que eu mais me lembro. Tudo bem, eles conseguem gerar satisfação imediata mas, ao mesmo tempo, são conclusivos — acabou, pronto. Os agridoces, por outro lado, ficam reverberando indefinidamente. O nó na garganta continua depois que os créditos passam pela tela, e daí se transforma em ruminação, tópico obsessivo de conversa. Talvez porque os elementos que geralmente compõem esse tipo de desfecho sejam tão familiares: o esforço sem resultados visíveis, o gosto de derrota mesmo quando se ganha, o mocinho que não fica com a mocinha... Finais agridoces geram identificação imediata.

Da primeira vez em que vi Glen Hansard e Markéta Irglová, simpatizei de cara — ela, tímida ao piano; ele, com seu violão esburacado. Os patinhos feios no meio da pompa da cerimônia do Oscar em 2008. Mas foi com a música que eles me conquistaram de vez. Ou melhor, meia música: bastou chegarem aos versos iniciais do refrão de Falling Slowly ("take this sinking boat and point it home / we've still got time") pra eu já ter meu candidato ao prêmio de Melhor Canção. Valeu a torcida — Glen e Markéta faturaram a estatueta com o tema principal de Once, que no Brasil acabou recebendo o título de Apenas Uma Vez.

Nem esperei o fim da cerimônia pra ir atrás do filme. E, mais uma vez, foi uma questão de segundos: logo na abertura, lá estava Glen com seu violão esburacado, numa calçada, cantando minha música favorita do Van Morrison, And The Healing Has Begun. Ele interpreta o Cara, que, quando não está consertando aspiradores de pó na oficina do pai, ganha uns trocados a mais como músico de rua. Durante o dia, toca covers, mas depois que o sol se põe e não tem ninguém prestando atenção, arrisca suas próprias composições. Numa dessas noites, conhece a Garota, interpretada por Markéta, que também trabalha na rua (vendendo ora revistas, ora flores) e pergunta pra quem ele escreveu aqueles versos (da canção Say It To Me Now) cheios de mágoa.

Dublin, onde os dois vivem, representa o ínterem no qual parecem estar presos: ele, tentando esquecer alguém que foi pra Londres; ela, à espera de alguém que ficou na República Tcheca. É justamente nesse "limbo" das ruas da capital irlandesa e das suas vidas que eles acabam se aproximando. Afinal, vagar por aí talvez seja a segunda melhor maneira de se conhecer melhor uma pessoa. A primeira, é claro, é a música. A Garota os conduz à loja de instrumentos onde o dono a deixa ficar praticando num dos pianos. Lá, o Cara a ensina a tocar Falling Slowly, e é evidente o sentimento que é simbolizado por aquele instante mágico em que eles se dão conta do quanto a canção fica melhor em dueto. Quando estão juntos, a cidade parece ampliar suas fronteiras — no passeio de moto, as ruas estreitas dão lugar a estradas, florestas, o mar. Quando estão juntos, conseguem convencer os outros (a banda, o gerente do banco, o técnico do estúdio) a gravar um punhado de canções.

FitzcarraldoA trilha sonora e a química entre os protagonistas, aliás, são os dois principais elementos que fazem o filme funcionar. O irlandês Glen, que já havia participado de outro musical no cinema antes, como o guitarrista do grupo soul em The Commitments [Alan Parker, 1991], é daqueles vocalistas que cantam com tudo: garganta, peito e vísceras. À frente do The Frames — banda formada em 1990 e da qual John Carney, o roteirista e diretor de Once, foi o primeiro baixista —, ele já alternava momentos explosivos, como em Revelate [do álbum Fitzcarraldo, de 96], com outros de introspecção, como em Lay Me Down, [For The Birds, 2001], às vezes ambos na mesma canção, como na versão ao vivo de Your Face [Set List, 2004].

Strict JoyFoi só quando montou outro projeto, The Swell Season, e deu início à parceria com Markéta que Glen realmente encontrou sua contraparte. Numa primeira impressão, a cantora e multi-instrumentista tcheca parece ter contribuído apenas com um pouco mais de doçura. Mas ela trouxe mais do que isso: a suavidade dos vocais e do piano de Markéta imprime uma tensão contida, num contraste que enriquece a voz áspera de Glen, como em This Low e The Moon, ambas do autointitulado disco de estreia do The Swell Season [2006], ou como em Lies e When Your Mind's Made Up, da trilha sonora de Once.

Até então, parecia uma fábula: o filme foi rodado em esquema totalmente independente, custou apenas US$ 30 mil, rendeu quase US$ 2 milhões e ainda por cima faturou um Oscar. A história ganhou mesmo ares de conto de fada quando, durante a turnê de promoção da película, Glen e Markéta iniciaram um romance na vida real. Só que, dessa vez, a torcida não adiantou — a relação não foi pra frente e os dois se separaram em 2009, pouco antes de lançarem Strict Joy, segundo álbum do The Swell Season. No ano seguinte, ainda vieram ao Brasil pra divulgar o trabalho, e tocaram no HSBC Brasil.

The Swell Season
O show foi cheio de momentos de arrepiar: quando Glen subiu sozinho ao palco e começou com uma performance realmente acústica (sem amplificação) de Say It To Me Now; quando a banca tocou as melhores faixas do disco novo: Low Rising, Feeling The Pull e I Have Loved You Wrong; quando eles mandaram duas do Van Morrison: Into The Mystic e Astral Weeks; e, claro, a cada canção da trilha de Once que apresentaram. A parte mais comovente, no entanto, foi mesmo Falling Slowly, que me fez voltar aquele nó na garganta.

De lá pra cá, Markéta estreou como solista com o álbum Anar [2011]. Glen está gravando o seu disco solo. E o The Swell Sweason acabou de lançar um autointitulado documentário que cobre os dois anos da tour promocional de Once, revela o cenário que levou o casal a se separar e soa como encerramento de um ciclo. Mas, quem sabe seja só uma pausa. Quem sabe a banda volte, renovada, e grave outros discos ainda mais inspirados. Quem sabe eles voltem...

Ei, eu nunca disse que não torço pelo final feliz.


6 de março de 2012

Ray Bradbury

ATUALIZAÇÃO: é com tristeza e algum assombro que vejo que este texto foi publicado exatos três meses antes da morte do autor.

[1920-2012]

Ray BradburyUma das minhas professoras de Português do segundo grau tinha uma máxima que ela repetia com voz rouca e solenidade quase cômica: “quem manda na língua é o falante”. Só que o bordão, em vez de funcionar como uma ferramenta pedagógica pra fixar aquela ideia, acabava virando alvo pros engraçadinhos de plantão, que imitavam a pobre mulher e faziam a atenção da sala se dispersar em meio a risos nem sempre contidos.

Mais tarde, descobri que a frase de efeito estava longe de ser invenção da professora. No estudo da língua, é possível observar um grande número de mudanças que acontecem na contramão das normas e da erudição. São muitos os casos em que a pronúncia acaba determinando a grafia de uma palavra, ou em que fatores sócio-culturais interferem na acepção de um termo.

"Alienu", por exemplo, que em latim significa "que é do outro", deu origem, em português, ao seu sinônimo "alheio". E está também na raiz de "alienígena", que quer dizer... "estrangeiro". Sim, porque a noção de que a palavra diz respeito a ETs ou a monstros cabeçudos que saem da barriga das pessoas vem por empréstimo da cultura popular, em especial a norte-americana. Aliás, "alien", em inglês, tem a mesma origem etimológica e significado que em português, podendo, ainda, se referir a espécies animais ou vegetais introduzidas em outro ambiente que não o seu.

Não é difícil imaginar, portanto, a analogia que trouxe a palavra a esse sentido de "extraterrestre" que ela tem hoje. Dos antigos gregos, que cunharam o nome pejorativo "bárbaro" pra se referirem a qualquer povo que não falasse seu idioma, às sempre conflituosas relações entre o Ocidente e o Islã, a humanidade sempre se cagou de medo e reagiu com agressiva desconfiança em relação a tudo que fosse diferente.

Os "estrangeiros" da ficção científica nada mais são do que um reflexo disso. A invasão alienígena de Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, por exemplo, espelhou o medo de um novo confronto mundial em 1938 (na famosa adaptação transmitida pelo rádio e narrada por Orson Welles), bem como a paranoia da Guerra Fria em 1953 (na primeira versão cinematográfica) e a ameaça terrorista em 2005 (na segunda versão, dirigida por Steven Spielberg).

As Crônicas MarcianasMuitas vezes, essas alegorias acabam nos passando despercebidas. É preciso que venha algum gênio nos dar um tapa na cara, como quando o físico Stephen Hawking comparou a hipotética vinda de extraterrestres ao nosso planeta com a chegada de Cristóvão Colombo à América (e o subsequente massacre das populações locais pelos conquistadores). Ou, antes disso, em 1950, quando o norte-americano Ray Bradbury publicou As Crônicas Marcianas [304 págs.; Globo, 2009].

As narrativas que compõem o livro foram escritas por Bradbury ao longo da década de 1940. Cada uma delas apresenta uma visão diferente a respeito da presença humana em Marte. Pro autor, são contos de fantasia, uma vez que, segundo ele, correspondem a uma "representação do irreal" e se opõem à ficção científica — esta, uma "representação do real".

Classificações à parte, a obra é mais do que uma mera compilação: é uma espécie de relato cronológico da fictícia colonização do planeta vermelho. Isto porque o escritor acrescentou capítulos breves que funcionam como interlúdios e que amarram um conto ao seguinte. Em conjunto, eles formam um diário que cobre o período que vai de janeiro de 1999 a outubro de 2026.

Embora Bradbury tenha sido bem-sucedido em seu esforço pra organizar essa crônica da conquista de Marte, o que mais impressiona no livro é justamente a diversidade de abordagens, além do modo como o autor brinca com as expectativas. Os clichês da telepatia e do mimetismo extraterrestres, por exemplo, são explorados com sensibilidade e criatividade em Ylla, A Terceira Expedição e O Marciano. A previsível comparação com a conquista do oeste norte-americano não demora a aparecer, mas é desenvolvida primorosamente em ...E a Lua Continua Brilhando.

Outros contos mais parecem exercícios de reflexão, ora filosófica ora mordaz, sobre a sanidade, como em Os Homens da Terra; sobre o tempo, como em Encontro Noturno; ou sobre o racismo, como em Flutuando no Espaço. Cabe até um tributo ao mestre do fantástico, Edgar Allan Poe, em Usher II — referência ao clássico A Queda da Casa de Usher, de Poe. Já a veia poética fica pro final, na belíssima conclusão O Piquenique de um Milhão de Anos.

Fahrenheit 451O escritor parece gostar de provocar questionamentos e de exigir de seu público mais do que uma simples leitura. Portanto, um filme baseado em As Crônicas Marcianas feito em Hollywood, que tem o péssimo hábito de eliminar qualquer caráter mais cerebral de uma obra em prol da ação, seria algo com que se preocupar. Pois há motivo pra apreensão: uma adaptação cinematográfica realmente está em andamento — e o pior, encabeçada, ironicamente, pelo produtor de Alien Vs. Predador. Resta rezar pra que essa versão pras telonas seja no mínimo tão decente quanto a que o francês François Truffaut fez em 1966 pra outro clássico de Bradbury: Fahrenheit 451 [256 págs.; Globo, 2005].

Na trama desse romance magistral (esse sim uma ficção científica, segundo o autor), somos apresentados a um mundo em que os livros são proibidos. Qualquer obra literária encontrada é logo queimada pelos bombeiros — o título, aliás, se refere à temperatura sob a qual o papel se incendeia. O protagonista, Guy Montag, é um desses homens do fogo; ele vive em crise com a esposa Mildred, cada vez mais mergulhada na ilusão alienante da tevê. As conversas que Montag tem com sua vizinha, a menina Clarisse, o levam a se render à irresistível atração que sente pelos objetos que deveria destruir.

A distopia criada por Bradbury assombra pelos paralelos que é possível traçar com certos aspectos da vida real. O cenário pintado no livro, por exemplo, não é resultado das imposições de um ditador tresloucado: ele é fruto da vontade da própria sociedade, que começa relegando a leitura ao segundo plano pra depois abandoná-la e recriminá-la de vez.

A edição de bolso da Globo de Fahrenheit 451 inclui um posfácio no qual o autor conta dois fatos interessantes. O primeiro é que ele costuma receber cartas de leitores incomodados, que pedem que ele reescreva As Crônicas Marcianas introduzindo mais personagens femininos ou reavaliando o modo como os negros são retratados, e coisas do tipo. O segundo é que uma editora cortou de um de seus contos expressões como “Deus-Luz” e “diante da sua Presença”, provavelmente por medo da reação da comunidade religiosa.

Bradbury então dispara: “Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos acesos. Cada minoria [...] acha que tem a vontade, o direito e o dever de esparramar o querosene e acender o pavio. Cada editor estúpido que se considera fonte de toda literatura insossa [...] lustra sua guilhotina e mira a nuca de qualquer autor que ouse falar mais alto que um sussurro ou escrever mais que uma rima de jardim de infância”.

A mensagem parece clara: em tempos de exagero do politicamente correto, de celebração da estupidez nos meios de comunicação, de imediatismo raso e banal dos 140 caracteres e das mídias sociais, todos nós somos os bombeiros que acabam com a arte e com a literatura. Somos as Mildreds hipnotizadas e apáticas em frente à tela o dia inteiro. Somos os astronautas que descartam culturas inteiras só porque são estranhas. Mas nós preferimos agir feito alienígenas, perplexos diante de uma realidade que não entendemos. Porque é mais fácil fingir que não entendemos. É mais fácil rir da piada do colega de classe e ignorar a lição.

27 de fevereiro de 2012

For The Good Times

Artista: The Little Willies
Milking Bull/Parlophone, 2012


For The Good Times
Norah Jones livrou-se das sandálias baixinhas que usava e sentou-se meio de lado, com as pernas dobradas sobre a poltrona. Os pés descalços sugeriam que ela se sentia tão à vontade quanto se estivesse na sala da sua casa. Mas, antes de começar a minicoletiva de imprensa, ergueu rápida e nervosamente os cantos dos lábios, num daqueles pseudossorrisos que as pessoas tímidas geralmente usam pra tentar disfarçar o desconforto — de fato, a cantora acabou confessando que dar entrevistas ainda era um sacrifício. Mesmo assim, respondeu às primeiras questões com desenvoltura de artista tarimbada.

Perguntei, então, sobre o dueto com Dolly Parton e a inesperada sonoridade country em muitas das faixas do novo álbum, Feels Like Home [2004]. Dessa vez, Norah sorriu de verdade antes de explicar que ela e os companheiros de banda estavam ouvindo bastante um disco de bluegrass gravado por Dolly, e que por isso pensaram em convidar a diva da voz aguda pra participar de Creepin' In, canção com levada no estilo composta pelo baixista Lee Alexander. Quanto à sonoridade, era um processo natural: a cantora disse ter sido influenciada pela música country tanto quanto pelo jazz, e destacou Willie Nelson e Hank Williams, além da própria Dolly Parton, como alguns dos artistas que ela cresceu ouvindo.

Sempre tive má vontade com o country, talvez por só conhecer sua versão pasteurizada — Garth Brooks, Shania Twain e afins — ou talvez por associá-lo à música medíocre feita pelos sertanejos. Apesar do entusiasmo naquela entrevista, Norah Jones não conseguiu me convencer a dar uma chance ao gênero. Só fui mudar de opinião anos depois, com o lançamento do autointitulado álbum de estreia [2006] do The Little Willies, projeto paralelo formado por Norah, Lee Alexander, o guitarrista Jim Campilongo, o baterista Dan Rieser e o guitarrista e vocalista Richard Julian, com a proposta de recriar standards country — e se divertir fazendo isso.

Difícil não se apaixonar de primeira por pérolas como Roly Poly [Fred Rose], Best Of All Possible Worlds [Kris Kristofferson] e I Gotta Get Drunk [Willie Nelson], bem como pelas composições próprias, como a balada Roll On [Lee Alexander], que bem poderia ter saído do repertório solo de Norah, ou a divertida Lou Reed [Lee Alexander/Richard Julian/Norah Jones], um conto felliniano — ou melhor, jarmuschiano — sobre o encontro com um sujeito vestido de preto no meio de um pasto no Texas. Além de terem aberto minha cabeça pro country, os Willies fizeram com que eu passasse a me interessar pela obra de caras geniais como Hank Williams e Townes Van Zandt, de quem a banda regravou I'll Never Get Out Of This World Alive e No Place To Fall, respectivamente. E graças à versão de Streets Of Baltimore [Tompall Glaser/Harlan Howard], conheci o Gram Parsons — mas essa é outra história.

Fiquei na expectativa por um novo trabalho da banda, que parecia fadada a não voltar a se reunir: Norah terminou o relacionamento de longa data com Lee, se aventurou em outro projeto paralelo — o trio roqueiro El Madmo — e lançou The Fall [2009], recheado de sonoridades mais modernas, possivelmente indicando os novos interesses da cantora. Mas o apego às raízes falou mais alto. O guitarrista Jim ficou no pé dos companheiros, coordenou as brechas nas agendas de todos e conseguiu marcar os shows que funcionaram como aquecimento pras gravações do segundo disco do quinteto, For The Good Times.

Nem parece que seis anos separam os dois álbuns — continuam lá o mesmo clima informal de jam entre amigos, os duetos precisos de Norah e Richard e o timbre incrível que Jim arranca de sua Telecaster. Fora a ausência de repertório autoral — a única composição própria é Tommy Rockwood [Jim Campilongo] —, a principal diferença nesse novo disco talvez esteja mesmo no ouvinte. Já iniciado no country, pude perceber melhor a abordagem dos Willies em cada música — se, por um lado, foram relativamente fiéis em Wide Open Road [Johnny Cash] e na faixa-título [Kris Kristofferson], por outro, os arranjos esparsos tornaram Lovesick Blues [Hank Williams] mais lânguida e Jolene [Dolly Parton], mais sombria.

Mesmo dentre as canções que não conhecia, consegui encontrar ao menos algo familiar, como, por exemplo, os nomes dos autores de Fist City [Loretta Lynn] e I Worship You [Dr. Ralph Stanley] — a primeira teve o excelente álbum Van Lear Rose [2004] produzido por Jack White, enquanto o segundo participou da trilha sonora de E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? [2000], dos irmãos Coen. O melhor, no entanto, foi mais uma vez ser apresentado a grandes expoentes do gênero, como Lefty Frizzell, o duo Lulu Belle & Scotty e Red Simpson, que comparecem no repertório, respectivamente, com o honky tonk If You've Got Money I've Got The Time [Lefty Frizzell/Jim Beck], a delicada Remember Me [Scotty Wiseman] e a tarantinesca Diesel Smoke, Dangerous Curves [Cal Martin].

Norah já declarou repetidas vezes que, pra ela, a música country é reconfortante por lembrá-la da infância e juventude que passou no Texas. Não à toa, a cantora está na capa de For The Good Times no colo dos companheiros — de pés descalços, como se estivesse em casa.


18 de fevereiro de 2012

Star Wars: Episódio I - A Ameaça Fantasma 3D

[Star Wars: Episode I - The Phantom Menace 3D]
Direção e roteiro: George Lucas
EUA, 2011

Star Wars: Episódio IQuando eu tinha seis, o ano 2000 era um futuro distante e inimaginável — embora, na minha cabeça de pirralho, fosse evidente que até lá o homem viajaria pelo espaço. Foi também com essa idade que eu vi um episódio de Star Wars no cinema pela primeira vez: O Retorno de Jedi [Richard Marquand, 1983]. Se os filmes anteriores tinham me deixado maluco pra ter um lightsaber, o último capítulo da saga só fez isso aumentar, além de me fazer sonhar com um jet pack igual ao do Boba Fett, uma speeder bike como aquelas dos Stormtroopers e o poder de disparar raios pelas mãos que nem o Imperador. Sem conseguir nada disso, tive de me contentar com uma revistinha de passatempos que o meu pai comprou pra mim, e que reproduzia cenas do filme: a luta com o Rancor no palácio de Jabba, a fuga do Grande Poço de Carkoon, a batalha de Endor, o duelo final entre Luke e Darth Vader... e os Ewoks. Eu gostava deles. Porra, eu era uma criança.

Aos vinte e dois, o ano 2000 era apenas "o ano que vem" e, na minha cabeça de recém-formado, era evidente que eu seria publicitário e trabalharia numa agência. E no entanto, embora eu tentasse me convencer de que aqueles sonhos de infância pertenciam a um passado distante, fui sozinho ao cinema em plena hora do almoço pra assistir ao primeiro episódio de Star Wars em 16 anos: A Ameaça Fantasma [George Lucas, 1999]. Apesar do horário, a sala estava quase cheia — muita gente da minha idade, alguns mais velhos e um bando de moleques. Não fui o único a sentir um arrepio com a fanfarra da Fox, a julgar pela gritaria. Talvez eu devesse ter vergonha de admitir, mas uma lagriminha escorreu quando surgiu o letreiro "A long time ago, in a galaxy far, far away..." e soaram os primeiros acordes do tema de abertura. A empolgação não durou até o final — saí da sessão desapontado com a escolha de um menino chatinho pro papel de Anakin [Jake Lloyd], com os tais dos midi-chlorians, com a morte prematura de um vilão tão fodástico como o Darth Maul [Ray Park]... e com o Jar Jar Binks [Ahmed Best]. Ainda assim, pensei que aquele era só o primeiro episódio e que, quando o Anakin crescesse, os filmes ficariam tão bons quanto os da trilogia original. Mantive o otimismo, com a esperança de que o melhor estava por vir. Porra, eu era uma criança.

Depois de tantas palhaçadas do sr. George Lucas, como as infinitas mudanças nos três filmes clássicos e a teimosia em insistir que o Han Solo não atirou primeiro, fui conferir a reestreia de A Ameaça Fantasma em versão 3D meio que por inércia. Aproveitei pra conhecer a sala Splendor, da PlayArte, no shopping Pátio Paulista. Tirando a tela, que não chega nem perto do IMAX, o resto é um exagero: o preço do ingresso (R$ 25 a meia entrada), a poltrona tão confortável que dá sono, os garçons e o maître, que veio me informar que a sessão não estava lotada e que eu poderia me sentar em qualquer lugar. De fato, só havia mais duas mulheres e um casal com um filho pequeno, falante e incansável. Normalmente, eu me irritaria com a estupidez de pais que levam uma criancinha que não sabe ler pra ver um filme legendado. Mas quando o garoto começou a cantarolar junto com a fanfarra da Fox, ele me fez lembrar das razões pra eu estar ali.

Revendo o filme hoje, muitas coisas fazem mais sentido. Jar Jar Binks continua sendo um porre, mas tem apelo infantil, tanto quanto os Ewoks em O Retorno de Jedi. Com seus parcos recursos de ator-mirim, o pequeno Jake Lloyd fez o que pôde com o texto ruim do sr. Lucas — a prova de que talento não salva personagens mal-escritos é a Natalie Portman no papel de Padmé Amidala, perdida e desperdiçada em toda a trilogia nova. E, é preciso admitir, Darth Maul tinha mesmo de morrer, já que o vilão de Ataque dos Clones precisava ser um ex-membro do Conselho Jedi, o Conde Dooku [Christopher Lee], e o de A Vingança dos Sith fatalmente seria o Imperador Palpatine [Ian McDiarmid]. A única falha que continua imperdoável é a desnecessária história dos midi-chlorians, que tira toda a aura mística da Força e a substitui por uma origem pseudocientífica babaca.

Fazendo o balanço, é um filme melhor do que eu me lembrava. A trilogia original era uma bem-sucedida mistura de gêneros: ficção científica, faroeste, aventura capa e espada e filme de samurai. A Ameaça Fantasma trouxe novos elementos pra saga, como as doses de intriga palaciana — a subtrama envolvendo a Rainha Amidala, o Senador Palpatine e o Chanceler Valorum [Terence Stamp] — e de épico antigo — a corrida de pods é praticamente um tributo à corrida de bigas de Ben Hur [William Wyler, 1959]. Além de Darth Maul, o filme introduziu outro grande novo personagem — Qui-Gon Jinn [Liam Neeson], um mestre Jedi quase tão fascinante quanto Yoda —, bem como apresentou uma divertida versão jovem e petulante do velho conhecido Obi-Wan Kenobi [Ewan McGregor]. Os três, aliás, protagonizam uma das melhores sequências do Episódio I: a luta de tirar o fôlego, ao som de Duel of the Fates, inspirada composição de John Williams que não faz feio perto dos temas clássicos. Ah, e considerando que o filme foi convertido pro formato, o 3D até que ficou decente.

Aos trinta e quatro, o ano 2000 é mais uma data no passado. Ser publicitário parece uma ideia tão distante quanto a possibilidade de um dia ter um lightsaber. Mas viajar pelo espaço é possível: basta deixar a rabugice e as expectativas exageradas fora da sala de cinema. Depois dessa, é claro que irei de bom grado conferir as reestreias dos próximos episódios em 3D. Porque, porra, eu sou mesmo uma criança.