5 de outubro de 2012

Pela Bandeira Do Paraíso

[Under The Banner Of Heaven]
Autor: Jon Krakauer
384 págs.
Companhia das Letras, 2003


Parecia um sujeito normal. Bem-sucedido profissionalmente e respeitado pela comunidade, era um marido e pai dedicado, apesar da recente crise familiar — anos antes, tivera um filho fora do casamento e passara a abrigá-lo (e à amante) em seu lar; no entanto, depois que seu herdeiro legítimo nasceu, a esposa pediu-lhe que mandasse o bastardo (e a amante) embora, e ele acabou atendendo. Alguns poderiam até reprovar tal atitude, mas ninguém a consideraria indício de insanidade. A única coisa realmente bizarra em seu comportamento era o fato de ele acreditar em um deus com o qual mantinha uma relação bastante pessoal. A divindade não apenas conversava com ele, como também o visitava, dava conselhos e prometia recompensas — faria dele, por exemplo, o líder de seu povo, caso aceitasse realizar algumas tarefas, como matar o próprio filho. Sem pestanejar, ele aceitou.

Profetas são figuras complexas, contraditórias e, por isso mesmo, fascinantes. Eles são capazes de compreender aspectos da espiritualidade que fugiriam à percepção de teólogos e filósofos qualificados, mas ao mesmo tempo apresentam claros sintomas de transtorno mental — afinal, eles ouvem vozes e vêem coisas. São abnegados que dedicam suas vidas a cumprir suas missões e, assim, garantir a salvação dos outros, mas são também narcisistas — eles é que são os eleitos, suas palavras é que são as verdadeiras, é do lado deles que os deuses estão. E, acima de tudo, são homens de fé, no sentido de que nada consegue abalar suas convicções — com todas as consequências positivas e negativas que isso possa trazer. No fim das contas, o que diferencia um profeta iluminado de um lunático é se você acredita nele ou não. A propósito, o sujeito do parágrafo anterior chamava-se Abrão, mais tarde conhecido como Abraão, patriarca bíblico dos israelitas. E aquele deus meio sádico era, portanto, o mesmo que depois se tornaria o Deus do Judaísmo, do Cristianismo e do Islamismo.

Era, também, o mesmo que falava com Ron Lafferty — aqui, a comunicação entre divindade e discípulo se dava por meio das chamadas "revelações", que Ron havia aprendido a receber e interpretar na Escola de Profetas que vinha frequentando, e que consistiam em textos escritos de próprio punho ou no computador, supostamente inspirados pelo Todo-Poderoso. Uma dessas revelações enumerava quatro pessoas que deveriam ser "removidas" para que a "obra do Senhor" pudesse seguir adiante. Ron mostrou-a ao irmão, Dan; juntos, concluíram que eram instruções verdadeiramente divinas e deveriam ser cumpridas. Começariam pelos dois primeiros nomes da lista, Brenda e Erica — respectivamente, a esposa do irmão mais novo deles, Allen, e a filha do casal, de apenas quinze meses de idade. Assim, em uma tarde de julho de 1984, Ron e Dan bateram à porta da cunhada, tão decididos quanto Abrão estava no momento em que ergueu o punhal contra o próprio rebento, Isaac. Só que, ao contrário do que aconteceu com o personagem do Gênesis, nenhum anjo apareceu no último momento para impedir o ritual e dizer que tinha sido apenas um teste de fé. Naquela noite, quando Allen chegou em casa, na cidade de Provo, Utah, encontrou a esposa e a bebê cobertas de sangue, ambas com a garganta cortada.

Como outros crimes dessa natureza, os assassinatos de Brenda e Erica foram obra de indivíduos perturbados com uma visão distorcida de sua crença. Mas o caso acaba se destacando por envolver uma religião que figura entre as que mais têm crescido nos Estados Unidos nos últimos tempos, segundo pesquisa publicada no início deste ano, e que tem entre seus membros ilustres o atual candidato republicano à Casa Branca, Mitt Romney — e que, mesmo assim, continua sendo um mistério para a maioria das pessoas, provavelmente familiarizadas apenas com o lado mais extravagante de sua doutrina, como o uso das "roupas de baixo sagradas" e a controversa prática da poligamia. Trata-se da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, também conhecida como Igreja LDS (sigla de seu nome em inglês, Latter-Day Saints) ou Mórmon.

Autor de livros-reportagem como Na Natureza Selvagem e No Ar Rarefeito, Jon Krakauer cresceu em uma cidade com expressiva comunidade de Santos dos Últimos Dias, tanto que muitos de seus amigos de infância pertenciam à LDS. Fascinado por aquele credo, o jornalista pretendia escrever um livro sobre "como uma mente crítica consegue reconciliar a verdade científica e histórica com a doutrina religiosa", numa abordagem sob a lente do Mormonismo. Tendo acontecido há menos de dois séculos, a criação da Igreja foi, como ele observa, "abundantemente documentada em relatos de primeira mão. Graças aos mórmons, tivemos uma oportunidade única de apreciar — com detalhes surpreendentes — como nasce uma importante religião". Durante a pesquisa, entretanto, sua atenção foi sendo irresistivelmente atraída para o crime dos irmãos Lafferty. O resultado é Pela Bandeira Do Paraíso, que procura dissecar o caso por meio de entrevistas com vários envolvidos, inclusive um dos assassinos, Dan, que cumpre prisão perpétua (seu irmão Ron, condenado à pena capital, aguarda até hoje o resultado de suas apelações no corredor da morte), além de depoimentos extraídos de transcrições das audiências e julgamentos.

A religião é, obviamente, um dos pontos centrais no relato. Ron e Dan eram mórmons dissidentes, embora não afiliados à FLDS (Fundamentalist Latter-Day Saints), principal ramo fundamentalista da Igreja. Para tentar entender o credo particular dos Lafferty e as diferenças entre LDS e FLDS, Krakauer recorre a eventos e personagens-chave na história do Mormonismo — a começar por Joseph Smith Jr., que fundou o movimento na década de 1820. Smith vivenciou um período de histeria apocalíptica (sob o impacto da recessão econômica na qual os Estados Unidos haviam mergulhado após a Guerra da Independência), em que muitos católicos e protestantes se sentiam insatisfeitos com a postura distante de suas igrejas, e buscavam conforto tanto em uma relação mais pessoal com seu Deus quanto em crenças voltadas ao misticismo. Influenciado pelo espírito da época, o futuro profeta, em sua adolescência, começou a oferecer um serviço de localização de objetos valiosos perdidos, que ele dizia ser capaz de achar utilizando uma "pedra mágica". A carreira foi interrompida quando ele foi acusado de charlatanismo, mas ainda havia mais um tesouro a ser encontrado.

Poucos anos mais tarde, Smith foi visitado por um anjo chamado Moroni, que revelou a existência de placas de ouro enterradas numa colina. Nelas, inscrita em caracteres egípcios, estava a história de uma tribo hebraica liderada por Lehi, que, cerca de 600 anos antes do nascimento de Jesus, saiu de Jerusalém e veio colonizar a América. Quando ficou velho, Lehi decidiu passar o comando para seu filho Nephi, o que enfureceu o outro filho, Laman. A tribo, então, ficou dividida em dois clãs: os virtuosos nefitas e os corrompidos lamanitas, que, por sua maldade, foram punidos por Deus e tiveram suas peles escurecidas. Na disputa pelo poder que se sucedeu, os lamanitas dizimaram os nefitas, o que explicaria porque os índios americanos têm a pele escura — seriam todos descendentes dos seguidores de Laman. Traduzida por Smith, essa narrativa foi batizada de Livro De Mórmon (Mórmon foi o líder dos nefitas na batalha final contra os lamanitas) e se tornou, juntamente com outro livro do profeta, chamado Doutrinas E Mandamentos, a base da Igreja dos Santos dos Últimos Dias.

Carismático, Smith logo conquistou adeptos, atraídos não somente por aquela história, mas também pelo fato de a nova religião ser legitimamente americana e incentivar uma comunicação direta dos fiéis com Deus — segundo o profeta, qualquer um era capaz de receber uma revelação divina. Com o tempo, entretanto, o líder se deu conta de que as suas instruções logo poderiam começar a ser contrariadas pelas revelações de algum seguidor. Smith, então, mudou o discurso, dizendo que Deus havia decretado que, a partir dali, apenas ele, o profeta, estava autorizado a receber os mandamentos divinos. É claro que nem todos aceitaram isso, e foi então que as primeiras seitas separatistas surgiram. Outro momento de ruptura foi quando Smith anunciou a revelação hoje conhecida como "artigo 132" e na qual o Senhor autorizava os homens a tomarem quantas esposas desejassem. A notícia chocou muitas pessoas dentro e fora da comunidade, e a suposta imoralidade daquela doutrina só fez intensificar a perseguição que os Santos já vinham sofrendo. A escalada de violência culminou com o assassinato de Smith, em 1844. Cerca de 40 anos mais tarde, um dos sucessores do profeta no comando da Igreja Mórmon finalmente cedeu às pressões externas e revogou o artigo 132, proibindo a já disseminada prática da poligamia.

Fundamentalistas, qualquer que seja o credo, lutam pela volta de suas religiões ao que eles acreditam ser seu estado mais puro. Os membros da FLDS, por exemplo, têm como principal crítica à LDS o fato de ela ter abandonado o casamento plural, que, afinal, foi ordenando pelo próprio Deus por meio de Joseph Smith Jr. Ron e Dan Lafferty defendiam não só esse como outros mandamentos descartados pelos mórmons da linha central, como a liberdade de qualquer fiel receber revelações divinas. E também um especialmente polêmico, pregado por Smith e por Brigham Young (sucessor imediato do fundador após sua morte e um dos principais responsáveis pela expansão do Mormonismo): a expiação pelo sangue, que dizia que algumas transgressões só podem ser redimidas se "o sangue dos pecadores for derramado no chão", nas palavras de Young.

Para quem não compartilha da fé, o primeiro impulso é qualificar todos — Smith, Young, os Lafferty e os Santos em geral — como lunáticos, já que a história narrada no Livro De Mórmon soa ridiculamente fantasiosa. Nesse sentido, a principal virtude de Pela Bandeira Do Paraíso é não permitir que a visão crítica seja contaminada pelo preconceito. Ao comentar a falta de evidências arqueológicas comprovando a existência de uma civilização como a dos nefitas na América ou de uma ligação genética entre os índios americanos e os hebreus, Krakauer lucidamente observa: "Todas as crenças religiosas derivam da fé não racional. E a fé, por definição, tende a ser imune à argumentação intelectual ou à crítica acadêmica. [...] Os que atacam o Livro De Mórmon devem ter em mente que sua veracidade é tão duvidosa quanto a da Bíblia, ou a do Corão, ou a das escrituras sagradas da maioria das demais religiões. Esses últimos textos simplesmente têm a considerável vantagem de haverem aparecido publicamente nos recessos sombrios do passado remoto, sendo por isso muito mais difíceis de refutar".

Ninguém nega que Ron tenha problemas, mas ele realmente acreditava que a sua revelação era divina, ainda que os quatro nomes na lista de remoção fossem coincidentemente os das mesmas pessoas que ele considerava culpadas por sua esposa tê-lo abandonado. Da mesma forma, Joseph Smith Jr. realmente acreditava que a poligamia era um mandamento de Deus, ainda que estivesse oportunamente em consonância com os seus apetites (o profeta teve mais de 40 esposas). É preciso admitir que distorcer uma crença para que ela se adeque aos seus próprios interesses não é um ato praticado somente na religião dos outros. A Bíblia na qual católicos e protestantes depositam sua fé, por exemplo, é uma compilação de textos selecionados e editados com o firme propósito de transmitir a mensagem que o ramo predominante na Igreja de então acreditava ser a mais adequada — e que, ao longo da história, serviu como justificativa para atrocidades como as Cruzadas e a Inquisição.

Logo nas primeiras linhas do Livro De Mórmon, Smith adverte que, se o texto tiver alguma falha, serão "erros dos homens". E é esse o ponto: os homens erram; só que quando eles acreditam com convicção em algo, eles deixam de se questionar.