20 de fevereiro de 2013

20 de fevereiro de 1977


Praça da República, 1977. Fonte: São Paulo Antiga
Caiu em um domingo... de carnaval. Um baile agitava a madrugada nos arredores da maternidade em que eu nasci. Foi o primeiro ano em que o desfile na capital paulista teve como palco a avenida Tiradentes, em vez da São João, como até então havia acontecido desde a oficialização do evento, em 67. Quando chegou a manhã, a Folha de S. Paulo estampava na capa a foto de um folião fantasiado de Carlitos, soprando sua corneta à frente de um bloco — uma ilustração bastante adequada para a reportagem no primeiro caderno que, em tom saudosista, relembrava carnavais passados, quando havia alegria de verdade pelas ruas tranquilas, antes dos "dias de racionalização e de congestionamentos". O trânsito, por sinal, era feito de Fuscas, Chevetes, Fiats 147 e outros modelos, muitos dos quais anunciados nas páginas da Veja, ao lado de propagandas dos jeans US Top, dos cigarros Shelton e do banco Comind. A última edição da revista, que havia chegado às bancas na quarta-feira, trazia entre seus destaques uma matéria sobre um jovem físico inglês em ascensão, chamado Stephen Hawking. Mais à frente, outro übber nerd era mencionado — Isaac Asimov, cujo romance Fundação [Foundation], primeiro volume da série espacial de mesmo nome, figurava entre os livros de ficção mais vendidos. Também faziam parte da lista Morte Na Praia [Evil Under The Sun], mais uma aventura do detetive Hercule Poirot, criado por Agatha Christie, e A Profecia [The Omen], de David Seltzer. Aliás, a versão cinematográfica da história do anticristo Damien, dirigida por Richard Donner, estrearia nas telonas do país naquela semana, disputando as atenções com Todos Os Homens Do Presidente [All The President's Men], de Alan Pakula, com Robert Redford e Dustin Hoffman.

Eram tempos diferentes. Os quatro Beatles ainda estavam vivos. John Lennon encontrava-se em pleno período de reclusão, iniciado depois do lançamento de Rock N' Roll, álbum de covers do gênero, e do nascimento de seu segundo filho, Sean, ambos em 75. Ringo Starr planejava, para o meio do ano, as gravações de seu próximo disco, Ringo The 4th, o primeiro a não incluir sequer uma composição de seus antigos parceiros — e que acabaria se revelando um fiasco. Paul McCartney, após uma bem-sucedida excursão mundial com o Wings, estava prestes a lançar um single com a versão ao vivo de Maybe I'm Amazed, registrada pela banda durante a porção norte-americana da turnê, no ano anterior. Coincidentemente, George Harrison também havia passado pelos EUA em 76, para gravar uma participação no programa Saturday Night Live, como parte da agenda promocional de seu mais recente álbum 33 & 1/3 — na ocasião, apresentou-se ao lado de Paul Simon, tocando belas versões de Homeward Bound, de Simon & Garfunkel, e Here Comes The Sun, dos Beatles.

Outro velho amigo de Harrison, Eric Clapton entraria em estúdio dali a três meses, e pouco depois lançaria um de seus melhores trabalhos solo: Slowhand, que incluiria no repertório sua interpretação para Cocaine, de J. J. Cale, os hits Wonderful Tonight e Lay Down Sally, e pérolas menos conhecidas, como Next Time You See Her e a instrumental Peaches And Diesel. E uma série de outros discos excepcionais chegaria às lojas, como o petardo Let There Be Rock, do AC/DC, com a faixa-título, Hell Ain't A Bad Place To Be e Whole Lotta Rosie; o clássico News Of The World, do Queen, com We Will Rock You, We Are The Champions, Spread Your Wings e duas das minhas músicas favoritas da banda, Who Needs You e It's Late; o jazzy-noir Foreign Affairs, de Tom Waits, com A Sight For Sore Eyes, Barber Shop e Burma Shave; e American Stars N' Bars, mais um acerto na até então impecável discografia de Neil Young, com Homegrown, Bite The Bullet e a magistral Like A Hurricane, bem como Star Of Bethlehem, com a participação especial de Emmylou Harris. A cantora, inclusive, lançaria seu próprio disco, Luxury Liner, com releituras de Pancho & Lefty, de Townes Van Zandt, e Making Believe, de Jimmy Work, além de She e da faixa-título, ambas de Gram Parsons.

Estreias de peso também estavam para acontecer. Egresso da cena londrina do pub rock, Elvis Costello chegaria — ainda sem sua futura banda de apoio, The Attractions — com My Aim Is True, produzido por Nick Lowe e repleto de canções irresistíveis, como (The Angels Wanna Wear My) Red Shoes, Welcome To The Working Week e a balada Alison. Também associado a uma cena (a do clube CBGB, em Nova York), o Television lançaria o influente Marquee Moon, com repertório praticamente todo assinado pelo guitarrista e vocalista Tom Verlaine. Por sua vez, The Jam, liderado por Paul Weller, lançaria não somente o debut In The City como também, seis meses depois, o segundo trabalho, This Is The Modern World. Já bem conhecido por suas insandecidas performances à frente do The Stooges, Iggy Pop faria sua estreia solo de modo semelhante, com dois discos separados por um intervalo de poucos meses: os igualmente poderosos The Idiot e Lust For Life. Tamanha inspiração seria resultado da chamada "fase Berlim", com ele e o amigo David Bowie em retiro na capital alemã, tentando se livrar da dependência química e compondo como loucos. Bowie também tiraria proveito da parceria, lançando, assim como Iggy, dois clássicos: Low, nas prateleiras desde o mês anterior, e "Heroes".

Seria um ano produtivo também para um quarteto nova-iorquino destinado a mudar a história do rock. Após o excelente Leave Home, disponível nas lojas desde janeiro, os Ramones disparariam em novembro o sensacional Rocket To Russia, um dos LPs de maior impacto na minha adolescência — Cretin Hop, Rockaway Beach, Sheena Is A Punk Rocker, Teenage Lobotomy, Do You Wanna Dance?, Surfin' Bird e outras, todas no mesmo álbum?! Conterrâneos dos Ramones e companheiros de cena no CBGB, os Dead Boys apresentariam seu debut, Young Loud And Snotty. Ou seja, o punk rock estava nascendo. Na Inglaterra, duas facetas distintas do gênero ganhariam seus primeiros registros: a veia politizada do The Clash, com seu autointitulado disco de estreia (que, aliás, estava sendo gravado naquele momento), e a anarquia dos Sex Pistols, com seu único LP, Never Mind The Bollocks. E mesmo não sendo exatamente punk, o Motörhead contribuiria para aumentar o barulho com seu primeiro álbum, homônimo.

Ao mesmo tempo, o fim de uma época se aproximava, simbolizado pela morte de Elvis Presley, em agosto — gordo, paranóico, viciado em remédios e solitário em sua mansão. Outras grandes perdas para o rock seriam as de Marc Bolan, do T. Rex, morto em um acidente de carro, e as do vocalista Ronnie Van Zant e do guitarrista Steve Gaines (bem como de sua irmã Cassie, backing vocal), do Lynyrd Skynyrd, vítimas fatais na queda do avião da banda.

Hoje, dois Beatles e três Ramones estão mortos. Não é uma Quarta-Feira de Cinzas, mas nem por isso o dia deixa de ter certo gosto de ressaca. Claro, é inevitável sentir-se nostálgico e melancólico quando se olha para trás — ainda mais no caso de um ano tão agitado quanto 77. Estranho perceber como uma manchete de jornal ou as páginas amareladas de uma revista ganham novas cores, um apelo romântico. Tudo acaba parecendo muito mais importante, significativo. Fica a impressão de que o hoje é só um prazo estendido, que o prato do dia são as sobras do banquete. E que as ambições de ontem vão ficando cada vez mais próximas dos sonhos — improváveis, ilusórios.

Bom, mas se eu consegui transformar um dia ordinário em uma data especial, talvez consiga fazer o mesmo com o amanhã.


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