14 de fevereiro de 2013

Nove Vidas

Em busca do sagrado na Índia moderna
[Nine Lives — In search of the sacred in modern India]
Autor: William Dalrymple
360 págs.
Companhia das Letras, 2012

Era, dependendo do ponto de vista, uma mercearia que servia bebidas ou um bar que vendia mantimentos. Localizava-se em um barrio afastado de San Juan Viejo e de Santurce — respectivamente, o centro histórico onde se concentram as principais atrações turísticas, e o distrito mais rico e populoso da capital porto-riquenha. Ali, dentre os fregueses que preferiam chamar o estabelecimento de bar, ninguém bebericava uma pinã colada ou algum outro coquetel tropical. Na verdade, qualquer drink colorido acabaria destoando das paredes desbotadas e mesas enferrujadas que caracterizavam aquele casebre meio decrépito.

Não que nós combinássemos muito com o ambiente. Larry, o cara de Washington, até parecia à vontade com sua Medalla Light, a cerveja local, bem semelhante às American lagers com as quais devia estar acostumado. Ainda assim, ele era o estereótipo do gringo: branquelo, com uma coloração rosada devido ao sol do Caribe, camisa polo, bermuda cargo e tênis para trekking, máquina fotográfica a tiracolo. Javier, o único que podia realmente dizer que se sentia em casa, me vigiava com uma expressão divertida, enquanto eu (que com meus olhos puxados já havia atraído as atenções quando adentramos o recinto) investigava o aroma da dose de pitorro, um rum caseiro, que repousava num copo à minha frente. Tomei coragem e entornei o líquido amarelado duma só vez. "Muito forte?", perguntou Larry, me encarando, ressabiado, por sobre os óculos. "Não", disfarcei, "só um pouquinho mais do que eu esperava". Javier me deu um tapa vigoroso nas costas: "Qual é, nosso amigo brasileiro tá acostumado com cachaça! Pra ele, isso é brincadeira". "Ka-sha-sssa", repetiu o gringo, em sua melhor imitação de português. Javier e eu rimos, Larry nos olhando com cara de interrogação.

Conversávamos sobre o moonshine, o uísque fabricado ilegalmente nos EUA, quando um rapaz se aproximou da mesa — moreno, magro, trajando chinelos, jeans e regata surrados. Achei que fosse pedir alguma coisa para os dois turistas, mas foi a "Javí" que ele se dirigiu, como se o conhecesse de longa data. Nascido e criado em San Juan, Javier havia se mudado ainda jovem para Miami, depois Nova York, trabalhando em diversos subempregos até finalmente conseguir se estabelecer como jornalista.

Após as saudações costumeiras, Javier explicou ao seu amigo, em espanhol, que tinha vindo apenas para cobrir o festival de jazz, e que, para aproveitar o dia de folga, estava mostrando o lado menos conhecido da cidade para seus dois colegas. O rapaz, então, nos desejou uma boa estadia e se despediu, em inglês, e logo em seguida foi cumprimentar os outros fregueses, um por um. "Sujeito popular", observou Larry. "A maioria das pessoas por aqui o conhece desde pequeno. A mãe dele é obá, uma espécie de sacerdotisa da religião local", explicou Javier. "Santería?", perguntou o gringo, sem conseguir esconder certa tensão na voz. "Yeah, yeah... E eu pedi pra ele dar uma boa olhada nas caras feias de vocês pra poder fazer uns bonequinhos vudus", zombou nosso cicerone. Rimos, embora Larry ainda parecesse um pouco desconfortável, provavelmente por ignorar que os santeros não são feiticeiros.

Brindamos ao privilégio de ter um nativo entre nós. Sem sua iniciativa de nos apresentar à periferia de San Juan — mesmo que superficialmente, devido ao tempo escasso —, teríamos conhecido apenas o roteiro oficial preparado pela organização do festival. Discutimos as vantagens de desbravar por si próprio uma cidade desconhecida, em vez de seguir as indicações subjetivas de um guia turístico. Constatei, com desânimo, que o mesmo raciocínio poderia ser aplicado ao relato de viagem que eu pretendia escrever — por que alguém iria querer ler uma descrição quando podia muito bem ir ver com os próprios olhos? "Indicações são sempre úteis, mesmo que seja pra ajudar a escolher que lugares não visitar. E no seu caso, é diferente — você vai escrever sobre a sua experiência, não sobre a viagem em si, certo? Além disso, você tem um protagonista totalmente carismático...", disse Javier, batendo no peito, com deboche. "Ei, a ideia deste passeio foi minha. Eu é que sou o protagonista", retrucou Larry, meio brincando. "Esquece, você é só o alívio cômico", sacaneou nosso cicerone, para então completar: "Apenas escreva, cara. No fundo, é tudo literatura. Quero dizer, a Odisseia, de Homero, é um extenso relato de viagem, não é?".

Quase 10 anos depois da visita à capital de Porto Rico, a única coisa que acabei escrevendo a respeito foi um conto meio "bukowskiano" construído para parecer um capítulo extraído de um guia de viagens — prova de que aquela observação acerca da Odisseia e das fronteiras imprecisas entre os gêneros literários realmente ficou na minha cabeça. E ela voltou, durante a leitura de Nove Vidas.

O escocês William Dalrymple é uma espécie de prodígio. Aos 22 dois anos, durante as férias da faculdade de História, ele resolveu refazer a jornada empreendida por Marco Polo no final do século XIII, da Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, até a corte de Kublai Khan, na Mongólia. Dalrymple seguiu os supostos passos do mercador veneziano e registrou tudo, comparando a opulência da antiga rota comercial com a moderna situação dos países que cruzou. O resultado foi In Xanadu: A Quest, publicado dois anos depois [1989] e imediatamente alçado à condição de best-seller. Fascinado pelo Oriente, especialmente pela Índia, para onde acabou se mudando, ele retratou o país em muitas de suas obras seguintes — The City Of Djinns [1994], sobre a capital, Delhi, e a trinca de cunho histórico, formada por The Age Of Kali [1998], White Mughals [2002] e The Last Mughal [2006].

A diversidade religiosa, tão representativa da cultura indiana, é abordada em Nove Vidas, seu primeiro livro a sair no Brasil, e que marca o retorno ao formato de relato de viagem — só que com uma diferença significativa. "Duas décadas atrás, quando meu primeiro livro, In Xanadu, foi publicado, no auge dos anos 1980, os livros de viagem tendiam a pôr em evidência o narrador: suas aventuras eram o tema; as pessoas que ele encontrava eram às vezes reduzidas a objetos de fundo. Com Nove Vidas procurei fazer uma inversão e manter o narrador firmemente nas sombras, trazendo assim as vidas das pessoas que encontrei para o primeiro plano, posicionando suas histórias no centro do palco", explica, na introdução.

E as vidas são, para dizer o mínimo, fascinantes. Dalrymple começa com um "golpe baixo" em A narrativa da monja, comovente capítulo dedicado a Prasannamati Mataji. Ainda criança, ela decidiu abraçar o jainismo, religião que prega o total desapego do mundo físico. Assim, seus seguidores renunciam não somente a todas as posses, passando a praticar o asceticismo e a mendicância, como também a qualquer relação afetiva — eles abandonam suas famílias, adotam o celibato e passam a vida cruzando o país a pé, sem firmar raízes. Após anos obedecendo a todos os preceitos, Prasannamati percebeu que havia falhado em um deles quando Prayogamati — colega que a acompanhou em suas peregrinações e com quem, sem perceber, acabou desenvolvendo uma grande amizade — adoeceu e decidiu fazer o sallekhana, jejum ritual até a morte. "Depois que Prayogamati partiu, não suportei a perda. Chorei, embora não se espere que o façamos. Todas as emoções são consideradas um obstáculo para se chegar à iluminação. Devemos cultivar a indiferença — mas ainda me lembro dela", confessa a monja.

O apelo emocional é também a tônica em As filhas de Yellamma, que narra a história de Rani Bai. Seus pais a consagraram, quando tinha apenas seis anos de idade, para se tornar uma devadasi — nome dado às mulheres que são devotas de uma das deusas do panetão hindu, e que cumprem sua missão oferecendo o corpo em troca de dinheiro. "Pouco depois da minha primeira menstruação, meu pai me vendeu a um pastor de uma aldeia próxima por quinhentas rúpias, um sári de seda e um saco de painço", conta, acrescentando que mais tarde acabou aceitando seu destino; hoje, ela não se considera uma "prostituta comum", e se sente protegida por Yellamma. O capítulo termina com uma revelação surpreendente.

Nove Vidas não se resume a um punhado de perfis de personagens raros. Além de apresentar as narrativas, o autor as contextualiza por meio de um breve histórico das religiões ou tradições que cada uma delas ilustra. E, embora o faça de modo sutil, também confirma sua obra como verdadeiro relato de viagem. Ao longo dos capítulos, o leitor é conduzido pelos quatro cantos da Índia, em um roteiro nada turístico. No sudoeste, no fértil estado de Kerala, fica a cidade de Tellicherry, onde Hari Das trabalha durante a semana cavando poços e, nos fins de semana, como carcereiro numa prisão para criminosos de uma facção de extrema direita. Uma vez por ano, no entanto, ele assume sua verdadeira vocação e se torna um theyyam, dançarino que incorpora uma divindade. No nordeste, em meio a uma floresta escura na região de Bengala, fica o terreno de cremação de Tarapith, onde vive Manisha Ma Bhairavi, uma sacerdotisa tantrista que, nas noites sem lua, participa de um ritual que envolve sacrificar animais e beber seu sangue em crânios humanos. A noroeste, além da fronteira com o Paquistão, fica Sehwan Sharif. É o local do templo dedicado a um santo sufi (vertente mística e sincrética do islamismo), e onde geralmente se encontra uma mulher gorda, vestida de vermelho e carregando um bastão de madeira, chamada Lal Peri Mastani, mais conhecida como a Fada Extática Vermelha. No norte, em Dharamsala, junto ao Himalaia, na única parada mais óbvia da viagem, está McLeod Ganj, a sede do governo tibetano no exílio. É lá também que vive Tashi Passang, monge budista que, no início dos anos 1950, abriu mão de seus votos e da pureza de seu karma para pegar em armas contra o exército chinês e, assim, assegurar a fuga do Dalai Lama.

"Ao situar muitas das histórias nos aspectos mais obscuros e menos românticos da moderna vida indiana, com cada personagem contando sua história, e somente com a estrutura criada pelo narrador, espero ter evitado muitos dos clichês acerca da 'Índia mística' que tanto arruínam os textos ocidentais sobre a religião indiana", aponta Dalrymple, na introdução. De fato, o autor consegue fugir da visão mais tradicionalista ao retratar o quanto a própria tradição tem sido abalada pelo processo de crescimento econômico e avanço tecnológico do país. Exemplo disso é o protagonista do capítulo O fabricante de ídolos, Srikanda Stpathy, cujo clã há quase 10 séculos tem se dedicado à produção de estátuas de deidades em bronze. O ofício, transmitido de geração para geração, corre o risco de acabar, uma vez que o filho de Srikanda tem outros interesses. "[Meu pai] não me deu escolha. Não vou fazer o mesmo com meu filho. [...] Certamente vou me assegurar de que ele tenha a habilidade — e ele já é capaz de fazer bons modelos de cera. Mas, se ele tiver boas notas e a chance de estudar engenharia da computação na universidade, seria injusto negar-lhe a oportunidade que deseja", afirma o artesão.

Como o próprio escritor nota, apesar de todas essas transformações, as questões permanecem as mesmas, milenares — o confronto entre pai e filho, velho e novo, sagrado e mundano. "A água segue adiante, um pouco mais veloz do que antes, porém o grande rio ainda corre. Ele é fluído e imprevisível em seus estados de espírito como sempre foi, mas serpenteia entre margens familiares", conclui Dalrymple. São palavras que, em termos de beleza, não deixam nada a desejar aos mais famosos poemas do hinduísmo. Ou da Grécia Antiga.

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