1 de fevereiro de 2013

Cosmos: A Personal Voyage

Direção: Adrian Malone
Roteiro: Carl Sagan, Ann Druyan e Steven Soter
EUA, 1980

Talvez eu pudesse ter sido cientista. Nunca consegui aprender coisas que pareciam elementares para as outras crianças, como andar de bicicleta, bater figurinha ou chutar a bola na direção do gol. Por outro lado, ainda pequeno, aprendi o significado de uma palavra difícil como "entomologista". E decidi que era isso o que eu queria ser. Foi depois de uma visita ao zoológico, onde, em um formigueiro artificial, era possível observar todas as câmaras e túneis da colônia de insetos — que, segundo me explicaram, era um sociedade totalmente organizada: as operárias recolhiam a comida, os soldados cuidavam da proteção, os machos cortejavam a rainha (isso significava, é claro, que sua função era a reprodução, mas eu inocentemente pensava neles como cavaleiros da corte; afinal, eles tinham asas!), e a rainha, por sua vez, só comia e tinha bebês-formiga. "Uau, eu podia ficar o dia inteiro olhando esses carinhas!". Resolvido, então: entomologista.

Algum tempo depois, foi a vez da arqueologia. Ganhei um livro daqueles com capa e páginas duras, todo colorido e ilustrado, que mostrava as diferentes espécies de dinossauros. E tome palavra difícil: tricerátops, protostega, arqueoptérix... Um dos meus favoritos era o paquicefalossauro: a parte de cima do seu crânio era extremamente grossa, como um capacete, e alguns estudiosos acreditavam que o animal usava essa protuberância como arma em disputas com outros da sua espécie. O desenho retratava justamente a hipotética luta entre dois paquicefalossauros, batendo suas cabeças uma contra a outra. "Lógico que era pra isso que eles usavam, pra que mais ia servir uma cabeça de capacete?!". Parecia igualmente divertida a vida de arqueólogo: descobrir esqueletos e imaginar como teriam sido aquelas criaturas estranhas.

A visita ao zoológico e o livro dos dinossauros tiveram, portanto, papel fundamental na minha nerdice. Não foram poucas as tardes em que, enquanto a molecada jogava futebol ou taco na rua, eu ficava sozinho no jardim de casa, investigando os insetos debaixo das pedras ou encontrando pequenos fósseis de hominídeos (os bonequinhos que eu mesmo havia enterrado no dia anterior). De vez em quando, a gritaria que vinha lá de fora me fazia, por um instante, ter vontade de sair e me juntar à algazarra. Mas logo alguma coisa me chamava a atenção — "ei, um tatu-bola!" — e eu voltava a mergulhar naquele mundinho.

É um pouco como me sinto na faculdade. Enquanto meus amigos normais estão assistindo à final do campeonato ou ao novo episódio de The Big Bang Theory, fico sentado durante três horas, ouvindo sobre oclusivas, fricativas e africadas, ou sobre Saussure, Chomsky e Hjelmslev (ainda as palavras difíceis...), e penso que preciso de uma cerveja. Mas logo alguma coisa me chama a atenção — "ei, o albatroz do Baudelaire!" — e eu volto a mergulhar. Assim, não é de se espantar (muito) que, depois de um semestre especialmente positivo, eu tenha resolvido me recompensar da maneira mais nerd possível: reservando um horário na grade para me divertir com alguma disciplina fora do meu currículo obrigatório. Examinando a lista de opções, detive-me em uma delas: Princípios de Astronomia.

O espaço demorou para me conquistar. Quero dizer, como todo garoto, sempre fui fascinado pela parte da fantasia — Star Wars e tantos outros filmes, séries, livros e quadrinhos. A realidade, por outro lado, era apenas... frustrante. Meu pai comprou uma luneta e, nas noites de céu limpo, ele a armava no quintal. Fiquei impressionado da primeira vez em que vi mais de perto a Lua com suas crateras, mas logo comecei a me perguntar: "Por que eles não mandam mais astronautas pra lá, ou então pra outros planetas? Por que perdem tempo com sondas sem graça?". Passei a acreditar que os cientistas espaciais eram um bando de chatos, até entrar em cena outra figura-chave para a minha nerdice: Carl Sagan [1934-1996]. PhD em Astronomia e Astrofísica, consultor da NASA, professor e escritor, Sagan conseguiu a proeza de introduzir em milhões de lares conceitos como Big Bang, explosão cambriana, DNA, sólidos platônicos e teoria da Relatividade, entre muitos outros, por meio de sua série Cosmos: A Personal Voyage. Dividida em 13 episódios de uma hora cada, foi exibida originalmente nos EUA em 1980. Chegou à tevê brasileira (passava na Globo, nos domingos à noite, depois do Fantástico) ainda no início daquela década — o ano exato me escapa, mas me lembro perfeitamente de aprender, com assombro, que há mais estrelas no universo do que grãos de areia em todas as praias da Terra, de ficar encantado com uma animação que resumia bilhões de anos de evolução das espécies em poucos segundos, e de temer que uma guerra nuclear pudesse pôr fim a tudo antes que o homem explorasse outras galáxias.

De repente, aos meus olhos, a família de estrelas, incluindo as parecidas com o Sol, as anãs brancas, as gigantes vermelhas e as pulsares, se tornou uma espécie de sociedade organizada interessante de se observar. De repente, era possível descobrir planetas e imaginar como seria a vida naqueles mundos estranhos. E isso graças a um cientista espacial que defendia a razão acima da crendice, e ao mesmo tempo acreditava que existia vida fora da Terra e que valia a pena procurar por ela. "Queremos buscar a verdade, não importa aonde ela nos leve. Mas para encontrá-la, precisaremos tanto do ceticismo quanto da imaginação. Não teremos medo de especular, mas teremos o cuidado de distinguir a especulação do fato", anuncia Sagan logo no primeiro episódio, The Shores Of The Cosmic Ocean [O Litoral Do Oceano Cósmico]. Talvez a melhor forma de ilustrar tal espírito investigativo seja mesmo o "veículo" que ele propõe para a jornada pelo cosmos: a nave da imaginação, "livre dos limites ordinários de velocidade e tamanho, impulsionada pela música da harmonia cósmica, capaz de nos levar a qualquer lugar e época". Hoje, o visual da nave, os efeitos especiais (então inovadores) e a trilha sonora new age composta por Vangelis — que se tornou mundialmente conhecido a partir dali — parecem datados. O mesmo não ocorre com o conteúdo do programa, como observa a corroteirista (e viúva de Sagan) Ann Druyan, na introdução gravada para uma reedição especial: "Mesmo após 20 dos mais movimentados anos na história da ciência, Cosmos requer poucas revisões e sem dúvida é rico em profecias". Mas não é apenas no caráter visionário como cientista que se resume o mérito de Sagan.

Com seu jeitão de nerd e seu blazer bege, ele conduz a série de modo didático, sem afetação e cheio de um entusiasmo contagiante. Depois de sua explicação sobre como o grego Eratóstenes de Cirene, diretor da Biblioteca de Alexandria, deduziu que nosso planeta é redondo (também em The Shores Of The Cosmic Ocean), fica difícil não partilhar da admiração de Sagan por esse homem que, mais de dois mil anos atrás, conseguiu calcular corretamente o diâmetro da Terra usando apenas "varetas, olhos, pés e cérebro". Difícil também não se divertir quando o astrônomo conta que, ainda criança, começou a se interessar pelo espaço e foi procurar um livro sobre as estrelas, ao que a bibliotecária lhe entregou uma revista sobre atrizes de Hollywood — no episódio The Backbone Of Night [A Espinha Dorsal da Noite], que, entre outros temas, retrata como os pitagóricos, na Antiguidade, defendiam o controle do conhecimento por parte de um elite, e como esse pensamento herdado pelos cristãos impediu o avanço científico durante séculos. O apresentador narra, ainda, outra lembrança de infância: influenciado pelas aventuras de John Carter, personagem criado pelo escritor Edgar Rice Burroughs, certa vez ergueu os braços para o céu, assim como Carter, desejando viajar para Barsoom — no episódio Blues For A Red Planet [Blues Para Um Planeta Vermelho], que descreve desde as pesquisas de Percival Lowell, no final do século XIX, acerca dos supostos canais em Marte, e as experiências de Robert Goddard, já na década de 1920, com a construção de foguetes, até o projeto das duas sondas Viking, enviadas pela NASA ao planeta vermelho nos anos 70, resultando nas primeiras fotos da sua superfície.

Além do carisma, Sagan consegue ganhar o espectador pelo discurso. Ele é capaz de disparar frases de efeito — "se você quiser fazer uma torta de maçã a partir do zero, primeiro precisa criar o universo", brinca, em The Lives Of The Stars [As Vidas Das Estrelas] — e argumentos irresistíveis, como seu comentário sobre as teorias criacionistas, em The Edge Of Forever [A Beira Do Eterno]: "Em muitas culturas, a resposta habitual [à questão sobre nossa origem] é a de que um deus ou deuses criaram o universo do nada. Mas se quisermos investigar corajosamente, nós devemos, é claro, passar à pergunta seguinte: de onde Deus veio? Se decidirmos que essa é uma pergunta sem resposta, por que não economizar uma etapa e concluir que a origem do universo é uma pergunta sem resposta? Ou se dissermos que Deus sempre existiu, por que não economizar uma etapa e concluir que o universo sempre existiu?". Muitas vezes, ele consegue também soar poético. Prova disso é a infinidade de vídeos que pululam por aí tentando ilustrar sua reflexão sobre o Pale Blue Dot, o célebre retrato tirado pela sonda Voyager 1 em que a Terra aparece como o tal "pálido ponto azul".

Cosmos é bem escrito inclusive em termos de narrativa. O episódio Harmony Of The Worlds [Harmonia Dos Mundos], por exemplo, começa com a afirmação de que "há dois modos de ver as estrelas: como elas realmente são e como nós gostaríamos que elas fossem", seguida por uma crítica à astrologia, a "pseudociência" que "parece emprestar um significado cósmico à nossa rotina diária". O apresentador fala então sobre as constelações, tomando como exemplo a que é conhecida nos EUA como Big Dipper, devido ao seu formato, semelhante ao de uma concha de cozinha. Os franceses, ele prossegue, em uma analogia semelhante, a chamam de La Casserole [A Caçarola]. Para os ingleses da Idade Média, no entanto, o grupo de estrelas parecia um arado; para outros povos da Europa, era uma carruagem; para os gregos, a cauda de uma ursa; para os chineses, um burocrata sentado em uma nuvem, seguido por dois peticionários (?!). "Algumas pessoas acreditam que essas coisas realmente estão no céu, mas nós é que as colocamos lá em cima", observa Sagan. Na sequência, aborda as primeiras descobertas astronômicas. Em especial, as de Johannes Kepler, cuja trajetória é contada por meio de uma dramatização. Para Kepler, o universo refletia a perfeição divina e, portanto, tinha de seguir um padrão geométrico: as órbitas dos seis planetas conhecidos em sua época deviam, ele acreditava, estar relacionadas às seis formas perfeitas chamadas de sólidos platônicos. Após décadas de cálculos infrutíferos, o matemático e astrônomo alemão se viu forçado a reconhecer que as órbitas, lamentavelmente, só podiam ser elipses, e foi então que pôde formular, com sucesso, suas três leis do movimento planetário. "Quando ele descobriu que suas tão estimadas crenças não estavam de acordo com a observação mais precisa, ele aceitou os fatos incômodos. Ele preferiu a dura verdade do que suas mais caras ilusões. Esse é o espírito da ciência", o apresentador conclui.

No último episódio, Who Speaks For Earth? [Quem Fala Pela Terra?], Sagan retorna à Biblioteca de Alexandria, visitada no primeiro da série. Dessa vez, ele examina como as grandes descobertas feitas dentro daquelas paredes jamais foram utilizadas para beneficiar a população, sendo aplicadas somente "para aprimorar armas, encorajar a superstição e entreter reis". No século 5 EC, a tensão social e política entre o ainda pagão Império Romano e o Cristianismo, então uma força em ascensão, resultou no assassinato de Hipátia, a última diretora da Biblioteca, por uma turba de seguidores do católico Cirilo, bispo local. Um ano depois, a própria Biblioteca foi destruída. De seu vasto acervo, restaram somente míseros fragmentos das obras de alguns dos maiores pensadores e autores da Antiguidade. "É mais ou menos como se os únicos trabalhos preservados de um homem chamado William Shakespeare fossem Coriolano e O Conto Do Inverno, e nós tivéssemos apenas ouvido falar que ele havia escrito outras peças bastante elogiadas em seu tempo, como Hamlet, Macbeth, Sonho De Uma Noite De Verão, Júlio César, Rei Lear...", compara o apresentador. O paralelo é uma forma de ilustrar como "o medo, a ignorância ou a sede de poder" podem exterminar o conhecimento, e serve para sustentar sua crítica à corrida armamentista promovida pela Guerra Fria. "Hoje, dois megatons é o equivalente a uma única bomba termonuclear — uma única bomba com o poder de destruição da Segunda Guerra Mundial inteira", ele aponta. "Mudanças fundamentais na sociedade são algumas vezes rotuladas como impraticáveis ou contrárias à natureza humana. Como se a guerra nuclear fosse praticável, como se houvesse apenas uma natureza humana! Mas mudanças fundamentais claramente podem ser feitas, nós estamos cercados por elas", afirma, citando o fim da escravidão, a dimunuição do abuso às mulheres e o surgimento da consciência ambiental. É emocionante pensar que, menos de uma década após a primeira exibição de Cosmos, o Muro de Berlim caiu, simbolizando o fim da Guerra Fria e reafirmando que, sim, é possível mudar.

Provavelmente, eu odiaria a Biologia e a Química envolvidas na formação de um entomologista ou de um arqueólogo. E com certeza desistiria de ser astrônomo logo à primeira menção de uma fórmula de Física ou Matemática. Minha visão infantil e romantizada dessas profissões não tardaria a ser desfeita. Mas agora eu consigo enxergar o que realmente me atraiu nelas — foi a possibilidade de imaginar novos mundos, debaixo da superfície ou além do espaço, e quem sabe explorá-los. Mais do que o conhecimento dos astros, foram os mistérios entre o ceú e a terra que me interessaram. É emblemático, portanto, o fato de que o primeiro cientista que me cativou foi não apenas um especialista em estrelas, mas também um tremendo contador de histórias.

Deixei os Princípios de Astronomia de lado e me matriculei em outra disciplina, chamada Shakespeare: Obra e Crítica. Acho que Carl Sagan teria me entendido.

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